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A Crítica como actividade
de risco e responsabilidade
Ou porque não podemos dizer algo impunemente

por Luís Nogueira

Ninguém vai fazê-lo, certamente. Muitos hão-de até discutir a sua pertinência e importância. Mas seria, talvez, interessante enquanto processo de interrogação e reconhecimento efectuar, um destes dias, sem grande pompa, mas com alguma seriedade, o papel, o lugar e o estatuto da crítica em geral, e da cinematográfica em especial.
Actividade tão frequentemente objecto de condescendência, muitas vezes odiada, certamente desprezada por muitos, ainda assim perseverante, necessária obviamente, circunstancialmente poderosa e, se calhar, mais vezes perigosa e nefasta que o desejável.
Não seria despropositado ou inconsequente rever ou recolocar em questão as suas modalidades, requisitos, vícios, utilidade, pertinência, sinceridade, força e especificidades. Sabemos empiricamente que a crítica em Portugal podia ser melhor: mais imaginativa, mais informada, mais heterodoxa, mais provocante, mais divertida, mais numerosa. Isto não invalida as honrosas excepções, que também existem.
Falemos então da crítica cinematográfica. Como se pode exercer bem essa tarefa? Com certeza, exige-se conhecimentos bastantes de teoria e história do cinema, capacidade de explanação, intencionalidade e firmeza argumentativa; claro, também, alguma sageza, alternativamente espírito polémico ou rigor analítico, moderação na contundência e na idolatria. Actividade singular e subjectiva por excelência, a cada qual cabe a gestão desses critérios e factores.
Fica-nos, depois de certas leituras, um sentimento de agressividade excessiva; ora, não há que censurar um certo modo de estar belicista quando de inquirições e avaliações se trata. O que incomoda é, sobretudo, é distinguir entre a gratuitidade do uso da violência inerente ao discurso e à palavra e a sua adequação e fundamentação. Também não se exige que sempre que se diz mal se procure fazer o bem. O que se pede é que não se piore o que já de si não era bom. Alguns críticos fariam bem certamente em reenquadrarem a sua actividade com uma muito justa e benéfica dose de ironia. Ao aperceber-se que qualquer paradigma estético ou qualquer doutrina analítica está a prazo condenada a exibir a sua precaridade e inabilidade, talvez deixassem de disparar os seus argumentos como se de verdades absolutas se tratasse. É raro, e digno de celebração, o texto onde se assume a contingência dos argumentos e das razões.
Não, não se pretende que cada qual abdique das suas convicções ¾ heresia mais grave não poderia amaldiçoar aqueles que têm como prática e obrigação opinar, ilustrar, interrogar, avaliar. Se cada realizador julga a sua a visão perfeita, cada argumentista o seu o esquema mais válido, cada espectador o seu sentimento o mais plausível, porque motivo não haverá o crítico de se achar crente de uma razão que é a sua? Por nenhum. Insiste-se apenas no seguinte: numa ética da virtude humilde, de aceitação do erro, da vigilância sobre as próprias presunções.
Não se veja aqui qualquer censura do auto-convencimento. Talvez se possa apenas vislumbrar algum niilismo, uma necessidade de disciplina, uma apologia da paródia. Ou seja, o que nos deve preocupar é um antídoto contra os feudalismos, os endeusamentos, os elitismos, a ortodoxia, a indigência, a ignorância, o relativismo. O dever do crítico é experimentar: alternativas, hipóteses, questões, alusões, desvios. Satírico, preciso, ilustrativo, técnico, cada qual que escolha a sua sentença e o seu estilo segundo a destreza que possuir e o gosto que lhe aprouver.
Que não se evite o consenso, tantas vezes fácil de explicar nas suas razões fragilidades, mas que se não iniba a polémica, que não é pecado nem mácula ¾ apenas a inconsistência dos argumentos, a manifestação de ignorância, a incapacidade de regeneração, a pobreza de perspectivas ou a estreiteza de horizontes de sujeitam à censura, não o ângulo que se escolhe para olhar e falar.
Está muito longe da dignidade intelectual, do contributo estético, da abertura semiótica, da depuração retórica ou da requerida entropização de abordagens o exercício da critica cinematográfica em Portugal. Talvez os críticos, tão zelosos (que os há) da teoria e da história do cinema, devessem aperceber-se do verdadeiro significado de termos e conceitos como género, multiplicidade, despretensiosismo, precaridade, ruptura. Seria, provavelmente, possível ultrapassar o modelo da cisão que esquematiza grande parte dos discursos: o popular contra o erudito, o comercial contra o artístico, o académico contra transgressor, a ousadia contra a convenção. Devemos então abrir os olhos e perguntar: será que toda a arte ou prática cinematográfica se resume a isso? Será que os analistas (palavra imerecida em muitos casos) se alhearam de entender as mudanças narrativas, tecnológicas, formais, sociais, económicas que nos têm afectado enquanto receptores, consumidores ou fruidores, bem como ao tempo, ao espaço e às visões do mundo? A avaliar pela parte maior dos textos e discursos, parece-nos que a maior parte se tem esquecido de fazer o trabalho de casa. E, assim, o seu contributo para o debate restringe-se e depaupera-se, necessariamente. Construíram-se alguns chavões, assumiram-se, banalizaram-se: a treta da globalização e o amor-ódio para com a produção e a herança intelectual europeias, o exotismo muitas vezes convencional do cinema do mundo e o sentido de corte, acidente e provocação dos enfants terribles independentes. A partir daí a unanimidade tem o caminho aberto, e a inquietação está instalada naqueles que não se conformam com a estreiteza das interpretações.
O que resta então? Muito pouco: alguns discursos mais avisados, casos esporádicos de apropriado, sólido e pedagógico enquadramento histórico, algum esforço ocasional de rejeição da norma, mas quase sempre tudo muito superficial, sem grandes comprometimentos ou com indisfarçada e presumida grandiloquência.
O que preocupa, sobretudo? O risco de enquistamento e velhice da crítica, o seu afundamento. Poderá então ensaiar-se um perfil do crítico e as premissas do seu serviço? Bom, as modalidades da crítica são vastas, flexíveis, com diversos níveis de leitura e percursos possíveis; há, pelo contrário, um anseio de problematicidade, discussões que suscitam dúvidas e, ocasionalmente, embates intelectuais. Pois bem, que se esgrimam razões e se confrontem argumentos, que ninguém se amedronte, em todo lado há lutas que devem e ser travadas. A opinião pública, esse espaço mental e comunicacional dúbio mas incontornável, agradeceria. Não duvidemos dos benefícios para o debate estético. O leitor aprenderia e aprenderia a julgar. Tudo para que os críticos não sejam apenas pavões, serviçais ou envergonhados escrivas, e assim se valorizem e questionem. Se fôr preciso que mintam, mas sem que ninguém o perceba. Que inventem, mas façam acreditar. Que se divirtam, mas não se equivoquem. O que deve fazer o crítico? Inquirir, e isso implica sempre uma estratégia de suspeita. Também deve guiar ¾ e para isso deve ser didáctico, disfarçada ou exuberantemente.
Que os críticos saiam da tumba onde parecem ter sido colocados. Eles devem umas vezes curar outras contaminar. Devem ser poetas, filósofos e entertainers ¾ e o mais que lhes aproveite e, mais importante, nos aproveite. Deve gozar e prepara-se para ser gozado. Conviver com a sua ingenuidade, a sua fragilidade e, por mais que doa, o seu ridículo ocasional.
Mas porque escreve e porque pensa (ou deveria fazê-lo), não deve abdicar de uma tonalidade grave e de uma acentuação ontológica: propor e apontar o risco dos objectos, das ideias e dos valores. Mesmo que se torne objecto de escárnio, pois quem mais que ele tem o poder de escarnecer?





 
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