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Opinião      


 


António Bento

Estudar e ler: para quê?

"Durante a minha infância, mal tendo ainda aprendido a ler, houve uma história da guerra dos Boxers que me causou uma grande impressão. Se bem me lembro, era um oficial do Estado-maior de Waldersee que contava a história de uma execução de reféns chineses. Estes formavam uma bicha, numa longa fila, para serem decapitados uns a seguir aos outros. Esse espectáculo emudeceu-o. Foi então que o oficial ficou assombrado ao ver, nessa bicha, um chinês a ler um livro. Esse espectáculo aterrorizou-o tanto que rogou ao responsável pela execução que salvasse a vida daquele homem. Conseguiu-o. Fez assim com que o leitor tomasse parte nessa medida de graça. O chinês agradeceu-lhe de maneira cortês. Mais tarde perguntei-me: o que é que estaria ele a ler? Deveríamos saber que texto era aquele. Hoje, posso conceber que ele tenha lido um capítulo do Kin-Ping-Meh, ou um manual de cultura de lírios. Aquele que conhece reconhece-se não pela matéria, mas pela existência do seu saber. É isso que devemos submeter à prova: tal como existem orações vazias, existe também um sorriso que convence". - Ernst Jünger, "Strahlungen" - "A cabana na vinha" (anos de ocupação). Diário IV, 1945-1948.

Tal como no próprio âmago do estudo se esboça uma lenda sobre o destino e a culpa, há qualquer coisa que é lendária no destino de todo aquele que estuda porque se sabe culpado. Porque se entrega a uma forma de crença mítica, aquele que estuda está destinado a ser contado entre o número dos que lutaram, dos que rezaram e dos que obedeceram. Pois que é precisamente de luta, de oração e de obediência que se compõem a matéria, a intenção e o voto contidos no estudo.

Quanto à luta, aquele que estuda sabe que o ódio só é permitido ao inimigo, não ao irmão, ainda que o inimigo possa ser a forma da sua própria pergunta pelo estudo; quanto à oração e à obediência, aquele que faz da estupefacção a sina e a anunciação da sua "queda", sabe que só a submissão dá a todos, mesmo àqueles que desesperam sozinhos, a mais forte das relações com o próximo. Porque é a verdadeira linguagem da oração, a submissão é simultaneamente adoração e a mais forte das ligações. "A relação com o próximo", escreveu um dia o estudante Franz Kafka, "é a relação da oração". "E a relação consigo próprio é a relação com a ambição. É da oração que extraímos a força para ambicionar".

É igualmente da submissão que o estudioso haure a consciência de que a culpa é o preço a pagar pelo carácter indestrutível do estudo, que é o carácter indestrutível do próximo. De acordo com o mais sinistro dos paradoxos do estudante Franz Kafka, as manifestações dessa luta pela indestrutibilidade que constituem a potência do estudo, são inevitavelmente destrutivas, forçosamente autodestrutivas. Por isso a paciência não é tanto a "vis ac potestas" do estudante, quanto o único recurso de sobrevivência do próprio cânone do estudo: "festina lente" - apressa-te devagar; devagar que tenho pressa.

E porque o estudo é uma doença da tradição, exige-se o sacrifício da verdade à sua transmissibilidade. Se na "Haggadah" é o pai que explica ao filho o estudo da lei sob a forma e a condição do exílio, na "Halakhah", que separa, tanto o filho do pai, como o pai do filho, desaparecem ambos no povo da aliança. Na poderosa pata que então a "Haggadah" ergue contra a "Halakhah", são as garras da autoridade da moral que ferem e rasgam a moral da autoridade.

Quando se estuda não se sabe ao certo o "que" se estuda. Sabe-se, quando muito, que se sabe por que se estuda. É por isso que a humildade e a procrastinação afligem o estudioso: a humildade, porque se sabe atingido pela seta envenenada da curiosidade, pela efectividade mítica que resulta do assombro diante da distância, natural e cósmica, e por isso estranha, entre a colérica fúria do trovão e a luz abruta e inesperada do relâmpago, entre o espanto, e o medo que o acompanha, e o seu apaziguamento; a procrastinação, porque sabe hoje que saberá amanhã menos do que alguma vez, nalguma hora de um dia, chegou talvez a saber. E ainda porque isso o arrasta e o empurra para uma melancolia odiosa, para uma tristeza sem fim (acedia) que o visita como o emblema de um aviso e a força de uma adivinhação nele mostrada.

Deste afecto, que dilata a potência até à impotência, que faz do acto uma convulsão e um estado de perpétua crise, nasce uma superstição macabra, uma incompletude monstruosa: "disiecti membra poetae", como um dia a chamou, pelo nome e pelo título, Johann Georg Hamann: "Ao sábio cabe coleccioná-los; ao filósofo interpretá-los; imitá-los - ou ainda mais temerariamente - ordená-los ao seu destino é a modesta tarefa do poeta".

Na sua pele de coleccionador, e porque só possui alma de estratega aquele que não se nega à experiência da propriedade, o estudioso, tal como Agostinho, sabe que só ao acto de coligir ("colligere"), i. e., ao acto de juntar e de recolher ("cogere") - no espírito e não em qualquer parte - os conhecimentos dispersos no vasto palácio da memória, é que propriamente se chama "pensar" ("cogitare"); enquanto filósofo, o estudioso possui consciência da radical incompletude e infinitude do estudo codificadas no acrónimo "PaRDeS", literalmente, "paraíso": P representa "Pshat", o sentido literal; R representa "Remez", o sentido alegórico; D representa "Drash", a interpretação talmúdica e haggadica; S representa "Sod", o sentido místico. A este propósito, talvez sirva de exemplo a resposta de Yitzhak de Berdichev, um dos grandes mestres Hassidim, à interrogação a que foi submetido quando os estudantes lhe perguntaram por que razão se encontrava ausente a primeira página de todos os tratados no "Talmude bavli" (Talmude da Babilónia), de forma que o leitor era obrigado a começar na página dois. "Porque, por muitas páginas que o estudioso leia", respondeu o rabino, "não deve nunca esquecer que não chegou ainda à primeira página"; na condição de poeta, o estudioso deve saber que para tudo o que seja exterior ao mundo sensível a linguagem só deve ser usada alusivamente e nunca comparativamente, uma vez que, em conformidade com o mundo sensível, a linguagem trata apenas da posse e das suas relações.

Quanto aos livros, de que um estudioso se deve ocupar, escreveu certa vez Franz Kafka, ao seu amigo Oskar Pollak, o seguinte:
"Parece-me que deveríamos ler apenas livros que nos mordam e firam: se o livro que estamos a ler não nos desperta violentamente como uma pancada na cabeça, para que nos havemos de dar ao trabalho de o ler? Para nos dar felicidade, como tu dizes? Por Deus, seríamos igualmente felizes sem livros nenhuns; em caso de necessidade, poderíamos nós próprios escrever livros que nos tornassem felizes. Do que precisamos é de livros que nos atinjam como a desgraça mais dolorosa, como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós próprios, que nos façam sentir como se tivéssemos sido expulsos para o meio dos montes, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser a picareta par o mar gelado que há em nós. É isto que penso".

 

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