José Geraldes
José Geraldes

 

 

 

 


A abstenção e o deixa andar

A taxa de abstenção de 49,08 ou seja de 4 milhões e 300 mil eleitores verificada nas Presidenciais de domingo passado é um facto político a ser equacionado, sem demagogias e com sentido de responsabilidade. E a esta reflexão nenhum cidadão se pode esquivar, sob pena de se demitir das suas funções cívicas.
Aos agentes políticos, partidos e governantes pede-se um exercício de humildade para terem a coragem de ler a mensagem destes milhões de portugueses. E de lhes dar resposta.
Com efeito, mesmo que se considere a abstenção uma forma de votar e não alheamento do acto eleitoral, a percentagem registada ultrapassa, de longe, os números clássicos em eleições. Quem se absteve, pode ter tido razões para o fazer, mas uma percentagem tão elevada como nunca se tinha visto, revela que há algo a corrigir na sociedade.
O argumento de que há ainda pelo menos 500 mil eleitores-fantasma - os mortos que ainda não foram expurgados ou os que estão inscritos em dois locais - não tira validade ao facto abstencionista.
Sociólogos, cientistas, políticos e analistas tentam explicar o fenómeno por várias razões. Uns põem em causa a fraca capacidade de mobilização de Jorge Sampaio em relação a Mário Soares, outros advogam o desinteresse dos portugueses pela classe política e a sua desilusão com o sistema político-partidário, e outros ainda atribuem a abstenção ao comodismo e à descrença nas instituições. Um sociólogo admite que a emotividade do "Big Brother" roubou espaço à campanha presidencial. E, como já se sabia de antemão quem era o vencedor, a motivação de luta esfumou-se. E não valia a pena ir votar.
Esclarecedoras estas explicações? Todas decerto terão alguma parcela de verdade. Mas nem todas dizem as causas da fuga dos portugueses às Presidenciais.
A abstenção agora verificada tem, quanto a nós, raízes mais profundas e mais vastas. E importa ver o contexto da actual sociedade portuguesa. Aliás, no seu discurso de vitória, Jorge Sampaio notou que "a sociedade portuguesa mudou muito".
Vejamos. A influência mediática da Comunicação Social sobretudo das televisões vai para onde? Para ganhar dinheiro, sem esforço e para o sucesso fácil. E muita gente já se habituou a este tipo de comportamento. E é isto e mais nada que é a sua preocupação. Ir a um concurso e vir de lá rico, eis o que mobiliza.
A mediocridade instalou-se na sociedade portuguesa, a par com o vazio de valores e de causas. O facilitismo e o deixa andar erguem-se como normas, não só na vida pública mas também nas escolas, nas famílias, nas empresas, nas instituições e nos indivíduos. A cultura de irresponsabilidade e de falta de exigência atravessa a sociedade. Mais grave: entrou nos hábitos quotidianos como acto normal.
Para quê preocupar-se, pois, com eleições? A somar a isto, o comportamento de certos políticos, determinadas atitudes de governantes na linha do deixar andar levam ao alheamento das questões políticas. E as pessoas querem respostas concretas para os problemas concretos. O que não acontece actualmente. Os comentários que se ouvem são sintomáticos: "eles são todos iguais". "O que querem é arranjarem-se e aos amigos". Demasiado simplistas estes juízos? Mergulhem no verdadeiro povo!
A política deixou de ser uma missão nobre como a definia Tomás de Aquino, para se transformar num jogo de carreirismos pessoais, sem a preocupação primeira que devia ser a do bem comum. Mas esta expressão sabe ao passado quando é valor perene.
Também as chamadas elites mostram falta de liderança. E têm medo inclusive de dar a cara. E, onde não há elites, instala-se o princípio de Peter que é a promoção dos incapazes e dos inaptos.
Numa sociedade assim o caminho para a abstenção alarga-se cada vez mais. O Presidente reeleito tem consciência disso. "Quero sacudir a resignação, a inércia, o deixa andar.(...) "Precisamos de um Estado responsável e responsabilizado, imparcial e eficiente, um Estado que mereça a confiança dos cidadãos. Precisamos de uma sociedade mais exigente".
Não é preciso acrescentar mais nada. Mas a tarefa é de Hércules. E quantos se revêem neste desafio?

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