José Tavares*

 

 

 

 


O Orçamento a Nu

Bem após a estação de aprovação do orçamento geral do estado interessa relançar um mínimo de reflexão sobre os verdadeiros problemas e natureza do orçamento.
Nas reacções dos intervenientes políticos, ele tem sido quase só um confronto de receitas e despesas: fala-se de "gastar acima das nossas possibilidades", de "tributar para além do razoável". As despesas e as receitas são a forma mais directa de o Estado influenciar a economia. Mas o conteúdo de receitas e despesas não pode continuar a ser descurado. A negociação pública do orçamento de 2001 teve ao menos o mérito de trazer algum desse conteúdo para a praça pública, com um autarca que prosseguiu ainda e sempre o interesse local,
quiçá à custa de interesses nacionais. As linhas com que se cosem receitas e despesas podiam ter-se tornado ainda mais o centro do debate. Mesmo com o risco de validar o que o poeta satírico Samuel Butler notou, na velha e parlamentar Inglaterra: "O homem é o único animal que ri e que tem assembleia legislativa".

O dado de partida indesmentível é que em Portugal o peso das despesas públicas é elevado. As despesas totais aproximam-se hoje de 50 por cento do que produzimos, alcançando assim um nível acima do da média comunitária. Em geral, quanto mais rico o país menor o nível de despesas públicas. Em confronto com os países da União Europeia, nós invertemos a regra: mantendo-nos pobres, tornámo-nos gastadores. E se na última década os países europeus diminuíram os seus gastos em quase 2 por cento do seu produto, nós aumentámo-los em quase 6 por cento do nosso produto. E continuamos a gastar relativamente mais em despesas de pessoal, as mais fáceis de aumentar e mais difíceis de controlar.

Mas se as despesas são elevadas e parecem fora de controlo o debate centrou-se erradamente nas despesas locais. A tentação de muitos analistas tem sido o de associar interesses locais a gastos particularistas e descontrolo orçamental.
Mais "territorialidade" dos deputados, entendida como ligação a interesses locais, implicaria, além da violação do espírito da constituição, uma corrida perversa ao bolo orçamental. Um estudo recente do Fundo Monetário Internacional desmente esta análise apressada. Três italianos, Ferretti, Perotti e Rostagno, demonstram nesse trabalho como países com circulos políticos mais pequenos (menos deputados por círculo e portanto mais "territorialidade") incorrem não em mais mas em menos despesas públicas. Por duas razões. Em primeiro lugar, para os partidos políticos é mais fácil redistribuir recursos e satisfazer clientelas através de despesas gerais - reformas, salários de funcionários públicos, subsídios a sectores económicos - do que através de despesas locais específicas - estradas, centros de saúde, escolas. Em segundo lugar, quando o sistema político põe os vários interesses locais competindo entre si, tira força a cada um deles. Isso entenderam muito bem os representantes políticos dos Açores e Madeira que, entusiastas das transferências localistas, nunca mostraram o mínimo entusiasmo pela regionalização.

Além da diferença de nível, há também uma diferença de natureza. Os interesses locais tendem a preferir o investimento público como forma de transferir recursos. Não é por acaso que a lista de "demandas" do autarca de Ponte de Lima fala de estradas, ponte, porto, centro de saúde e fábrica! Tudo formas de investimento. Os investimentos públicos, ao contrário das transferências públicas, vêm com domicílio marcado. Ou seja, a perversão despesista dos interesses locais, sendo grave, não será à partida a mais grave. Em contraste, as transferências públicas generalistas que aumentam em resposta a grupos de interesse particular aumentam quase só e penas o consumo público.

Em última análise, a única resposta às pressões para melhores serviços públicos que não acarreta o aumento do peso do estado é a melhoria da eficiência dos gastos públicos. Aos altos níveis de despesa por nós alcançados, é preciso recentrar o debate na qualidade e eficiência das despesas públicas. Quando compramos um televisor, e antes de aprovar o "orçamento", discutimos o preço que pagamos versus a qualidade. Inexplicavelmente, a discussão do orçamento geral do estado ainda não vai além da quantidade. É preciso saber como gastamos e com que efeitos para avaliar da utilidade de continuar a gastar. Esse passo só pode ser o primeiro para encontrar novas soluções pela reforma das instituições e das políticas.

Até sermos capazes de estabelecer uma avaliação da eficiência dos gastos públicos só nos resta controlar os aumentos adicionais da despesa. Esse controle exige um pacto político sério. Mas as chamadas despesas "localistas" são secundárias no cômputo geral, quanto mais não seja porque se auto-regulam. Na parada do orçamento é desinteressante dizer que o autarca vai nu quando o rei segue à frente sem roupa.

*Docente da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa

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