João Correia
João Correia

 

 

 

 


FAMÍLIA: ESQUERDA, DIREITA VOLVER

Portugal assistiu a uma das mais recentes exibições de falta de senso, cultura e oportunidade que me foi dado escutar em 27 anos de democracia. A recente polémica sobre a família e sobre alguns projectos referentes à sua defesa trouxeram à tona de água uma certa incapacidade de esquerda e direita meditarem sobre valores profundos, deixando à conjuntura ditar as normas que dizem respeito à estrutura profunda das nossas sociedades.
A história tem duas versões:
Versão a) O PS, preocupado com o facto de ter aprovado uma série de diplomas "fracturantes" relativos à união de facto e economia comum dos homossexuais, terá decidido piscar um olho ao eleitorado de centro e aprovar uma agenda de protecção de família, nomeadamente uma lei de bases e a revisão do estatuto da adopção, que anteriormente teria considerado incorrecta ou inoportuna:
Versão b) a direita, apanhando o PS em flagrante delito de idílio pecaminoso com o Bloco de Esquerda procurava colar o PS à esquerda, demonstrando que a verdadeira defesa dos valores tradicionais era a feita por ela. Logo, a disposição do PS para aprovar essa lei era um flagrante oportunismo demonstrativo de uma certa falta de coluna vertebral da esquerda em geral e do PS em particular.
Como se não bastasse, alguns socialistas preparavam-se para votar contra a Lei de Bases da Família por a mesma conter valores reaccionários, com os quais se não identificavam.
Não vou fazer de avestruz e pronunciar-me de modo salomónico pela inexistência de valores morais mais ou menos conservadores. Ou seja, há valores morais intolerantes, homófobos, sexistas, conservadores, menos abertos e há, ao invés formas mais ligadas à modernidade, de olhar a moral. Porém, a reflexão sobre esta matéria é, ainda a meu ver, insuficiente para se poder dizer que a Esquerda tradicional ou a tradicional nova esquerda ( é nova porque é uma derivação iniciada em 68 da Revolução Francesa e é quarentona e elegível para efeitos de apoio a Jovens Empresários) é sempre mais aberta e tolerante e a direita é sempre mais trauliteira e conservadora. Um dos méritos de algumas das reflexões da Escola de Frankfurt sobre este tema foi o de demonstrar que na esquerda, onde se postula a defesa do iluminismo e da modernidade, se escondem valores autoritários e ultra conservadores que sobrevivem no mainstream do eleitorado de praticamente todos os partidos. O problema é felizmente, mais vasto e não reduz o nosso comportamento a um escolha partidária sancionada por Lei da Assembleia da República e por Decreto do Governo. Não há iluminismo nem racionalismo ou jacobinismo dogmáticos que possam fazer esquecer o peso das tradições e dos valores nem fundamentalismo conservador que possa ignorar que o mundo muda, , e, nalguns casos, a tradição é sujeita a uma revisão que não carece de nenhum debate explícito. Finalmente, podemos dizer que já passaram 31 anos desde os fins dos anos sessenta e alguns valores anti-autoritários que resultaram de uma leitura apressada do freudo-marxismo e de uma resistência justa contra concepções ultrapassadas já demonstraram os seus limites. Por outro lado, muitas das gritarias contra o divórcio, anti-concepcionais e até a dimensão das saias ou a liberdade de escolha no uso ou não uso dos soutiens parecem hoje saídos de um site da Internet dedicado à pré-história do nosso pequeno momento civilizacional.
Nessa medida, não me parece que a defesa da família tradicional com ou sem aspas seja um valor da direita, porque ele goza de uma intemporalidade que prevalece sobre cálculos estratégicos e egocêntricos. Mais parece-me que é possível defender em simultâneo a concessão de determinados direitos para a economia comum independentemente da orientação sexual dos parceiros envolvidos e, simultaneamente, lançar um conjunto de incentivos destinados à protecção da família. Querem exemplos: a valorização do trabalho doméstico; o aumento dos direitos (e deveres) resultantes da maternidade e da paternidade; o aumento das regalias sociais e fiscais que decorrem da mesma situação, etc.; etc.; Sou, por exemplo, daqueles que, sem qualquer reaccionarismo, continua a entender que na sociedade do bem estar, que tanto trabalho deu a conquistar contra os preconceitos e o dogmatismo da direita conservadora, se terá perdido alguma coisa do valor afectivo dos cuidados prestados pela família: provavelmente, em muitos casos, avós e netos ganhariam em partilharem experiências de vida no interior de uma família alargada do que serem lançadas, em qualquer caso, de modo precoce uns na creche, outros, no lar. Sou daqueles que entendem que é um valor civilizacional a preservar e a alargar a valorização dos tempos passados pelos pais junto dos filhos- Sou finalmente, daqueles que entende que para que esta situação pudesse acontecer , é necessária uma valorização da família. Tudo isto defende e nada disto me impediria de compreender que não é possível virar as costas ao tempo e aceitar que há novas formas de família que também merecem reconhecer a sua especificidade.
No debate conjuntural que se fez no Parlamento e nem beliscou a sociedade portuguesa houve dois comentários que me pareceram chocantes:
-um jornal noticiou que Manuel Alegre e Helena Roseta iam votar contra porque, na tradição do Iluminismo da Revolução, entendiam que a fonte de todos os direitos e era o indivíduo e não a família. Ora, uma afirmação destas merece ser pensada porque na direita e n esquerda já muita água correu sobre as pontes e muito do necessário individualismo da revolução de 1789 foi ultrapassada por medidas de esquerda que compreenderam que havia valores a preservar que não se compadecem com uma concepção desenraizada do sujeito.
O mesmo jornal noticiava que António Guterres se preparava, neste contexto de abertura à direita, para retomar, após contactos com Maria Rosário Carneiro, uma nova legislação sobre adopção que visava tornar mais célere o processo adoptivo após a confiança judicial. Se isto é abertura à direita, bolas para a esquerda que nunca visitou uma instituição de crianças em risco e não percebe o alcance social que esta medida comporta.

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