João Correia
João Correia

 

 

 

 


DIA MUNDIAL DO LIVRO.
GASTRONOMIA COM SABOR TEOLÓGICO

Tenho um entendimento demasiado egocêntrico das minhas paixões para lhes dar forma a propósito de efemérides. Deixei passar o Dia Mundial do Livro para tentar uma abordagem sobre esta matéria. Finalmente ganhei coragem para fazer o que há de mais kitsch na acção de um cronista: revelar os seus gostos. Pus-me a pensar: se um dia fosse obrigado a seleccionar os livros que me proporcionaram verdadeiro prazer e entusiasmo o que levava na mochila para essa ilha deserta aonde decerto mudaria de opinião. De qualquer modo, posso de um modo algo farisaico e pedagógico anunciar que este era o plano de livros que usaria para tentar convencer os meus alunos a lerem. Mas é mentira. Na verdade, falo dos livros de que gostei como o gastrónomo fala dos pratos com que se lambuzou.
Começaria com uma anafada "Montanha Mágica", uma espécie de prato de resistência de qualquer almoço suculento. A "Montanha Mágica" é um arroz de marisco ou um cosido à portuguesa confeccionado por um chef francês. Tem o peso das digestões difíceis e a subtileza dos molhos e temperos raros. Escrever um romance acerca de um tipo que vai para um sanatório com tuberculose e fazer, a propósito desta estadia, um diagnóstico da nossa civilização europeia é um truque que exige esta combinação verdadeiramente paradoxal de peso germânico combinada com a leveza intelectual que os ares rarefeitos das montanhas centro-europeias proporcionam. Do mesmo cozinheiro sugeriria uma entrada leve, escrita com o peso demencial de uma genialidade surpreendente: "O Eleito". Os livros de Thomas Mann são esquisitos e essa é a sua qualidade suprema. São anacrónicos, outonais, falam de mundos desaparecidos -"Os Budenbroock" e "Morte em Veneza" são exemplares" - e parece-me envoltos num cheiro forte a uma morte e decadência: como cheiro dos lírios que ele descreve nas primeiras páginas dos Budenbrook. Morte em Veneza é acima de tudo, a memória de uma sinfonia de Mahler num inesquecível filme de Visconti. Se só me deixassem levar livros por uma ilha deserta usaria algum truque de presidiário para esconder a cassete e o vídeo nalgum canto recôndito do porão do navio imaginário que me levaria para a minha Santa Helena.
Curiosamente, alguns sentimentos semelhantes só foram descritos com força idêntica por um americano, um representante da raça mais progressiva do mundo: Faulkner. Faulkner é um sulista e por isso é todo o contrário do espírito yankee, o qual para mim, ,sempre ficara bem representado por uma máquina a vapor. Mark Twain era Yankee. Faulkner é um trágico. "O Santuário", por exemplo, é uma genial combinação da tragédia grega com o romance policial. É um prato forte. Sanguinolento e apetitoso, pessimista, trágico, abissal, e minuciosamente decadente. Será por acaso que algumas das páginas memoráveis de Absalam, Abasalam são a descrição lenta, doentia, detalhada, obsessiva de como os insectos e os germes, os bichos e outros espécimes retalham e moem uma casa, e com ela a sua história?
Em Faulkner tudo se passa sob o olhar do Anjo da Morte, o qual não é , apesar da sua cruel bondade, um verdadeiro anjo, pois, esta história da decadência sulista é uma história da decadência humana onde mais do que a esperança de redenção ( não há disso em Faulkner) só há lugar para o sacrifício que ainda por cima se afigura inútil.
O optimismo, curiosamente, nunca proporcionou, que me recorde grandes romances. Kafka é o universo dos homens pequeninos e atormentados, uma metáfora sobre a insignificância, sobre a trágica recusa do transcendente. Afinal, o Homem é um homenzinho, pior é um homenzito. "América" - é o meu livro de Kafka. O riso sarcástico do judeu inocente e amargurado ouve-se por detrás dos textos de Camus e "A Peste" havia de caber a pontapé nesta mochila de exilado. Porém, apesar do pessimismo dos meus livrescos companheiros de viagem teria que haver lugar para um riso menos cruel: todas as crónicas, cartas, e farpas que Eça escreveu de Londres Paris, de Lisboa, da Buraca da Havana, haviam de entrar nesta bagagem imaginária. Ao seu lado, estaria decerto "O Meu Agente em Havana" de Graham Greene. Imaginem um tipo que tem uma avença com os serviços secretos Ingleses e, por falta de material para justificar o ordenado, acaba por fotografar o aspirador com o auxílio de filtros e objectivas enviar os respectivos negativos aos seus chefes coma explicação de que se trata de uma base secreta em Cuba.
O que será uma deslocação para uma ilha deserta sem uma sombra de pecado que dê um pouco de picante a esta existência ociosa ? "O Retrato de Dorian Gray" é um dos mais interessantes textos sobre a moralidade que eu reconheço se especialmente tivermos em conta que a sua componente pecaminosa é a mais sincera e genial quanto o arrependimento final e moralista se revela beato e hipócrita.
Porém, numa ilha deserta se há pecado há culpa. E como pela via de Oscar Wilde, não há vergonha é preciso levar Dostoievski (quase todo) e uma autora que alguns teimam em considerar uma mera romancista policial: Patricia Higsmith. Na secção do pecado, caberia "A Inocência e o Pecado", "O Poder e a Glória" , "O Factor Humano", todos de Graham Greene. De vez em quando, vislumbra-se nele uma intensa esperança na redenção do Homem. Felizmente, o espectáculo dessa redenção nunca é folclórico, emancipatório ou ingenuamente optimista. A redenção dos pecadores em Greene é uma trágica via sacra, sem excesso de consolo para o sofrimento que acarreta.
Mesmo um agnóstico tem que partilhar a ilha deserta com Deus, pois sem Ele não há um universo constituído, e a ilha podia desaparecer antes de eu acabar de ler os livros. Se fosse um Deus panteísta, quase pagão, seria preciso levar "A Um Deus Desconhecido" de Steinbeck. Se fosse um Deus católico ou cristão (mas para ser verdadeiramente parecido com algo de grande chamado Deus, suficientemente omnipotente e trágico para sair do quotidianozinho empoeirado dos fariseus nem do Padre Nosso musicado na versão easy-listening de algumas missas post-concliares ) teríamos que levar connosco um dos pouco poetas que reza com dignidade: Ruy Belo, o único autor que fala de Deus mesmo quando nuca se Lhe refere directamente. E, sem dúvida, Vergílio Ferreira, o agnóstico português que melhor compreende a crença.
Finalmente, que seria feito da minha pachorra numa ilha deserta sem memórias? Para livro de memórias levava "As Palavras" de Jean Paul Sartre, até porque termina cerca dos doze anos, ou seja quando acaba a única idade digna de ser lembrada. Por último, teríamos que levar a Revolução e com ela o melhor livro que nos fala da liberdade numa certa leitura que dela fez o século XX": a "Condição Humana" de Malraux.
Feito isto, já possa talvez sobreviver e até fazer um paraíso, e com um bocado de sorte, até o Inferno; com humor, decadência, culpa, pecado, deus e Memória e a Revolução temos ingredientes quase todos. Claro falta o amor e, claro, o Sexo, mas eles abundam nos livros citados.
Todos os locais com livros me lembram sombras frondosas. O meu paraíso pessoal teria estantes de mogno e muitos livros mais ou menos desarrumados. Nesse sentido, o computador é uma janela luminosa aonde se escondem livros que não li. Bibliógrafo, bibliomaníaco, podem-me acusar que eu gosto. Há quem se lembre de me falar do direito de não ler e de me dizer", em conluio com Pessoa, que "não consta que Cristo tivesse Biblioteca". Se não fossem as Bibliotecas, ó ímpios, Cristo ainda existiria?

PS: Pode alguém pensar que me lembrei do Dia Mundial do Livro e me esqueci do Dia 25 de Abril e do Dia da Universidade. Mas esta crónica é dedicada a essas três datas. Sem querer fazer um discurso de pedagogia política foi o 25 de Abril que permitiu as liberdades e alguma expansão da educação, para além de ter acabado com essa idiotice suprema que é o "delito da palavra " e os livros proibidos. Finalmente, é também graças à UBI que a Covilhã já não é um lugar arredio à ciência, à cultura e à Arte. E é em grande parte graças ao impulso da UBI e à travagem que ela significa no envelhecimento da cidade que se dissemina a esperança de também poderem ir surgindo alguns pólos de excelência e de cultura e algumas cortes de aldeia. Para já esperemos pela nova Biblioteca. Pela minha parte tudo farei para que se comprem muitos livros.

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