Domingos Vaz

O Pelourinho da Covilhã: Silo-Auto versus Praça Urbana


Quanto às cidades, sejam elas muito grandes, médias ou pequenas, o que evidenciam os numerosos estudos e debates efectuados é o seguinte: a aplicação dos investimentos, o ambiente e qualidade de vida, a política do automóvel em meio urbano, são três dimensões que têm de estar estreitamente ligadas.
Quando há problemas, é a integração das soluções que os permite atacar. Neste sentido, a política de transportes (individuais e colectivos) deve preconizar o mínimo de efeitos negativos no meio ambiente e deve subordinar-se às opções de ordenamento do território. São estas últimas que devem "ditar" as suas leis à política de transportes.
Dentro deste princípio orientador, e num momento em que surgiram recentemente na imprensa alguns artigos sobre as obras em curso no Pelourinho, não poderia deixar de reflectir sobre as mesmas na perspectiva técnica e científica, única motivação que inspira estas linhas.

O Pelourinho, actual Praça do Município, pelas funções urbanas nele sediadas, detém uma forte centralidade. É lugar de atracção e é também lugar central que diversos fluxos atravessam, possuindo uma elevada potencialidade de vivência urbana, acentuada pelo carácter simbólico na história da cidade.

Eis uma passagem que caracteriza a situação no fim dos anos setenta: "O Pelourinho é o coração da cidade! E como tal ali converge tudo o que de bom e mau existe, ou existiu: exaltação patriótica, comemorações cívicas e religiosas, música de bombos ou pancadaria de pau, conversas serenas ou encontros de ódios, gente de bem, arruaceiros, pequenos e grandes, tudo por ali passou deixando um rasto de vida nas pedras gastas da calçada.... Era então o Pelourinho uma bonita praça gradeada, tendo por fundo a imponência austera da Casa da Câmara, construção filipina, que abria ao meio um arco, o Arco da Cadeia, para dar passagem para a Rua 1º de Dezembro. (...) No centro a graciosidade do coreto era a alegria da música que as Bandas (houve mais que uma) atiravam ao ar puro e frio da serra nevada. Tinha árvores frondosas ao redor, a que se arrimavam bancos de madeira, aqueles bancos que ficaram na história pelos versos de João Figueiredo e música do maestro Gomes: "Ó bancos do Pelourinho que saudades me fazeis...". Eram o descanso dos velhos e a cama dos vagabundos, bêbados e desempregados inatos, que neles curtiam a bebedeira em noites quentes de Verão e no Inverno sobre o acolchoado da neve. Todos os Domingos se realizava ali o mercado. (...) Passaram anos. Novos prédios surgiram delimitando a praça. Uma placa central sem arte, nua de árvores onde devia estar há muito, num pedestal florido uma estátua ou o pelourinho desaparecido. Passou a chamar-se Praça do Município... Novas modificações estão em curso. Foram abaixo os últimos velhos prédios que tinham história que será bom recordar. E agora passou a Centro Cívico!... Novos edifícios vão surgir com arcadas soturnas onde não haverá cafés com esplanadas, discoteca ou livraria, casa de modas enfim qualquer comércio engalanado, vivo, que à noite faça palpitar a praça como Centro Cívico. Mas uma coisa é certa. Por mais mudanças de estruturas e de nomes que os anos possam trazer e os homens destruir ou construir, a praça que é o "coração da cidade", não deixará de chamar-se - O Pelourinho". (Ilda Catalão Espiga, in Notícias da Covilhã, n.º 3161, 7 de Março de 1980.)

O Pelourinho, ou a sua modernização, foi assunto em foco em meados de 1973. A modernização então "sonhada" contemplava um hotel (de dezassete andares!), um parque subterrâneo de estacionamento e um centro comercial (Notícias da Covilhã, n.º 2833, 28 de Julho de 1973). A dita modernização não haveria de ir tão longe, mas foi suficiente para desfigurar a praça estilizada em "meio-antigo, meio-moderno", como então se dizia.
Actualmente, nova "modernização" está em curso e as "novas perspectivas" vêm retomar, nas opiniões do Arq. Nuno T. Pereira (autor do projecto) e dos autarcas, certezas e convicções inabaláveis numa matéria onde tal nunca poderá ser garantido. Convém lembrar que uma cidade é um sistema dinâmico de organização, com as mais diversas funções integradas, cujo futuro está dependente da qualidade de cada uma dessas funções. Além disso, há necessidade de ponderar (e acautelar) processos de geração de expectativas sempre associados a estas intervenções que, a não serem preenchidas, são fonte de efeitos perversos, indesejáveis, que podem ir mesmo contra os objectivos iniciais dos decisores, por mais bem intencionados que tenham sido.
A função transporte/estacionamento é determinante, podendo facilitar ou dificultar o funcionamento da cidade. Pode acentuar desequilíbrios ou contribuir, por si própria, para a qualidade do ambiente e da vida urbana. No caso vertente, a enorme sensibilidade (e fragilidade) das estruturas físicas e sociais da área aconselharia a uma intervenção bem planeada e de impactes controláveis, sob pena de não serem garantidos efeitos de sustentabilidade e regeneração, com capacidade de irradiação a toda a área urbana envolvente. Daí a importância das exigências funcionais que devem orientar estas acções de intervenção nos tecidos urbanos consolidados e tradicionais.

É daqui que nasce o meu pessimismo em relação à solução encontrada: a construção de um silo-auto de "grande" capacidade no seu subsolo, mantendo à superfície a circulação automóvel, embora com alguns (poucos) ganhos de área para os peões. Mas, na essência, o "convívio" forçado e nefasto entre automóveis e pessoas manter-se-á e, quando assim acontece, é sempre em prejuízo destas últimas. Penso se não seria uma "utopia" mais razoável descentralizar o estacionamento para outros locais, como o Campo das Festas (eventualmente também no subsolo), diminuindo a pressão da circulação automóvel sobre o Pelourinho, ao mesmo tempo que se fomentariam os fluxos pedonais entre as zonas do Campo das Festas/Jardim e a de S. Silvestre e do Mercado, sendo isto possível com medidas adequadas de atractividade no espaço público para os peões, numa área que, em toda a sua extensão, não apresenta alterações significativas de cotas e que é de grande centralidade no contexto da cidade. Adicionalmente, melhorava-se a articulação entre as zonas de vale da Covilhã e, bem assim, a própria ligação entre os pólos da academia, que a cidade interioriza cada vez mais como sua.
Os cidadãos desejam viver em cidades humanizadas (Vejam-se os inquéritos da UITP, Union Internationale des Transports Publics, realizados no âmbito da União Europeia desde o início da década de noventa.). As ruas e outros espaços urbanos não devem restringir-se a vias ou nós rodoviários, mas devem ser promovidos como espaços destinados a incentivar a troca comercial ou social, a reconciliar o homem e o seu meio ambiente. A circulação automóvel pelo ruído que provoca, pelas emissões de substâncias tóxicas, a par da ocupação desregrada do espaço público, não é mais tolerada, suscitando, cada vez mais, contestação pelas populações que a consideram um entrave à liberdade de movimentos. Ela é, pois, cada vez menos compatível com o respeito pelo ambiente e paisagem urbana.
Sem questionar a necessidade de intervir na área central da Covilhã, que considero indispensável (o diagnóstico da situação de referência isso indica), do que me parece não haver dúvidas é que se trata ainda de uma perspectiva micro e convencional de ver os problemas, muito baseada na engenharia de tráfego, independentemente da qualidade da equipa projectista.

Intervir num tecido urbano consolidado e tradicional não requereria um tempo de reflexão para que as "fundações" da melhor solução planeada ficassem efectivamente sólidas? Os covilhanenses certamente que não gostariam de ver acrescentar à imagem que guardam do Pelourinho como "lugar urbano central" de encontro, convívio e manifestações urbanas várias, esta outra de Silo-Auto, sempre mais redutora do que aquelas que a autora da citação extraída do Notícias da Covilhã criticava, perplexa, há pouco mais de duas décadas: as de Centro Cívico e Praça do Município. No fundo, não se estará a curar um mal com outro maior ainda?