Por Cláudia Cardoso e Patrícia Caetano


O maestro Luís Cipriano quer uma licenciatura em música na UBI

U@O- Como nasceu a paixão pela música?
L.C.- No ciclo tive a sorte de conhecer o professor Carlos Gama. Foi ele que alertou os meus pais para a possibilidade de eu vir a estudar música.
A coisa na altura não foi de todo fácil. Há 30 anos, um puto chegar a casa e dizer que queria ser músico era uma coisa complicadíssima. Era uma profissão mal vista, associada àquela vida de cigano, de andar de um lado para o outro, às drogas e todas essas coisas.
Quando tinha 17 ou 18 anos os meus pais perceberam que realmente era mesmo aquilo que eu queria e apoiaram-me muito mais. Tive de comprar um piano, o que significaria uns 10 ou 12 ordenados do meu pai.
Depois entrei na parte profissional da música, que tem corrido bem. Efectivamente, durante o meu percurso musical, tanto em Castelo Branco como na Covilhã e noutros locais, tenho encontrado gente boa e tenho encontrado idiotas. Tudo o resto tem sido muito positivo e passou a ser ainda mais a partir do momento em que eu vim para a Covilhã. Fiquei surpreendido pela quantidade de gente com capacidades musicais que aqui encontrei.

U@O- Qual foi o instrumento que mais lhe despertou a atenção?
L.C.- Isto é curioso. Eu estudei piano, que é precisamente o instrumento que mais detesto. A princípio gostava muito de piano, mas as pessoas vão evoluindo, vão conhecendo outros instrumentos. Adoro todos os instrumentos de percussão. Aliás as minhas sinfonias são repletas de percussão. Tenho dois instrumentos de que gosto mais - o que a nível de composição se reflecte - que são o violoncelo e o oboé. São os instrumentos que timbricamente mais me atraem.

U@O- O que sente quando compõe?
L.C.- Às vezes envolve-se a situação de compor em algum romantismo. É aquela história de que os compositores vão para o campo e estão a compor e a ouvir os passarinhos. Se eu estiver a compor num sítio e andarem lá os pássaros a chatear-me, levam uma pedrada porque o que eu quero é estar concentrado no que estou a fazer. A atitude de compor tem a ver com a vivência pessoal de cada indivíduo. Depois há a parte científica e o gosto pessoal. O somatório disto tudo é que dá a composição. Compor não é nada do outro mundo.

U@O- Qual foi o momento mais alto da sua carreira?
L.C.- A Palestina foi, profissionalmente, talvez um dos momentos mais altos. Também achei curioso quando fui recebido pelo Papa. Nessa circunstância foi mais pelo significado das minhas obras terem ficado na Biblioteca do Vaticano.

U@O- Como surgiu a oportunidade de ir à Palestina?
L.C.- A ida à Palestina, pode parecer estranho, começou com uma brincadeira. Quando estava no governo o antigo ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, para além de nunca sermos subsidiados, nunca conseguimos que ele assistisse a um concerto nosso. Pior do que isso, nunca conseguimos que ele respondesse aos nossos convites. Um dia, convidámos o Fidel Castro, o Arafat, o rei João Carlos, o Saddam Hussein, uma série de personalidades. Fizemos isto para provar que os grandes líderes a nível mundial tinham outro tipo de formação e outro tipo de educação, que o ministro da Cultura não tinha. Sabíamos à partida que eles não vinham, mas pelo menos todos eles tiveram a delicadeza de responder ao convite. Provámos que o Fidel Castro é mais educado para uma instituição de cultura em Portugal que o próprio ministro da tutela. Foi daí que surgiu o contacto com a Palestina. Fui informado pela Embaixada desse país que havia um concurso mundial onde se escolheria um compositor para criar a obra que assinalava os 2000 anos do nascimento de Cristo. Eu concorri. Não tinha nada a perder. Foi uma surpresa quando me participaram que eu tinha sido o compositor escolhido, até porque conhecemos o peso que Portugal tem internacionalmente.

U@O- Quando e em que lugar da Palestina se realizou o concerto?
L.C.- A estreia da oratória foi a 19 de Dezembro de 1999. Só assistiram individualidades convidadas. Realizou-se na Igreja de Santa Catarina em Belém, local onde dizem que nasceu Cristo. Depois, no dia 24, noite de Natal, repetimos na principal praça de Belém, Nazareth Square, onde estavam cerca de 15 mil pessoas. O concerto foi transmitido por 43 cadeias de televisão, nenhuma portuguesa. Claro! Logo em Janeiro imediato recebemos uma chamada dos Estados Unidos. Estavam a fazer um programa na cadeia de televisão ABC que se chamava "Os melhores Natais do mundo". Telefonaram a informar que o nosso concerto tinha sido escolhido para ser transmitido.

U@O- Como foi possível conseguir uma actuação perante o Papa?
L.C.- Foi uma daquelas coisas que me passam pela cabeça. Um dia cheguei ao ensaio do coro e disse: "Pessoal, eu tenho que falar com o Papa e nós vamos cantar para ele". Todos acharam que era mais uma brincadeira minha. Fiz os contactos, tive que mandar imensas cassetes de vídeo e CDs do coro para analisarem se nós tínhamos nível para cantar na Basílica de S. Pedro. A partir do momento que acharam que tínhamos nível, e sendo eu um dos poucos compositores a nível mundial que ainda escreve música religiosa, acharam que o Papa nos poderia receber e que as minhas obras ficariam na Biblioteca do Vaticano.


U@O
- O que compõe para além de música religiosa?
L.C.- Já compus sinfonias, já compus para teatro, para cinema. Música de câmara componho imenso. Quando a Escola Profissional de Artes da Beira Interior abriu e os alunos davam os primeiros passos, quase todas as obras que tocavam eram escritas por mim. Escrevi muitas músicas para percussão. Eu não sou a pessoa ideal para dizer o que já escrevi. Aqui na Associação Cultural da Beira Interior tenho pessoas que conhecem as minhas obras todas do princípio ao fim, mas eu não conheço. Normalmente quando acabo uma obra tenho sempre três ou quatro encomendadas. Quem quiser pegar nela, pega. Eu tenho outras coisas para fazer. Já aconteceu ir de carro e estar a ouvir na rádio um quarteto de violoncelos que por acaso até me agradava bastante. Parei numa estação de serviço e tive curiosidade de saber quem era o compositor. Fiquei espantado quando percebi que o compositor era eu. Não me soava estranho, mas não me lembrava que tinha sido eu que tinha feito aquilo. Isto tem a ver com o ritmo de vida que eu levo. As coisas passam muito rápido.

U@O- Sente-se realizado profissionalmente?
L.C.- Sim. Só me falta uma coisa e tem a ver com a UBI. Sinto-me frustrado enquanto a UBI não abrir os cursos superiores de música. Temos, aqui na Associação, a Escolinha do Zéthoven. Começamos com os miúdos aos 4 anos. Aos 12 podemos encaminhá-los para a EPABI onde fazem o 12º ano. Depois poderiam ir para a UBI, onde seriam licenciados em música. A cidade passaria a ser a única no Interior onde havia um percurso musical com todos os passos até à licenciatura. Já se falou disto em tempos.

U@O- Que divulgação do vosso trabalho têm feito em Portugal?
L.C.- Quando gravámos o nosso primeiro CD, "Música dos nossos avós", tentámos fazer muita divulgação no nosso País. Depois surgiu um convite de Porto Rico. Seguiu-se Roma, onde estreei uma obra minha. No Luxemburgo e na Bélgica a mesma coisa. Nós tivemos um ano em que demos mais concertos no estrangeiro do que em Portugal, o que não deixa de ser curioso.

U@O- Tem alguma história engraçada que se tenha passado nalguma dessas digressões?
L.C.- Agora sou capaz de lhes achar alguma graça, mas na altura não teve nenhuma. Foi quando fizemos um concerto em Nazareth, Palestina. No dia em que actuámos, havia grandes problemas entre cristãos e muçulmanos. Estava o coro em cima do palco, decorria o concerto ao ar livre. De repente começámos a ouvir aquilo que pensávamos serem foguetes e continuámos o concerto. As pessoas continuaram a assistir. O que se passou foi que o lado muçulmano começou a disparar, porque queriam que parássemos, uma vez que as músicas eram católicas. O mais engraçado é que continuámos no palco perfeitamente descansados. Quando acabámos o concerto, metemo-nos logo a caminho de Belém com um carro de polícia. Talvez tenha sido o concerto mais atribulado que tivemos.
Em Gaza, o concerto correu muito bem. Houve um problema por culpa minha. É tradição as pessoas assobiarem quando gostam muito dos espectáculos, e não baterem palmas. E, antes do concerto começar, eu fui avisado disso, só que esqueci-me de dizer ao coro. Portanto, acabou a primeira peça, tudo a assobiar. O coro completamente desanimado. Eu fazia-lhes sinais de que estava tudo porreiro, mas claro que eles não acreditavam porque ouviam os assobios. Então as peças que são à partida aquelas que as pessoas mais gostam, era a plateia toda de pé a assobiar e o pessoal estava desanimadíssimo de todo.

U@O- Uma mensagem para incentivar a ultrapassar as dificuldades que surgem para quem quer ingressar numa carreira musical.
L.C.- A dificuldade maior na música é a capacidade de trabalho. A pessoa pode ter muito jeito para a música mas tem de compreender que é preciso trabalhar muito.
Em cada concerto que fazemos, estamos a ser examinados, por isso é preciso ter uma grande resistência. Na música, em Portugal, encontramos muitos idiotas, por isso é preciso ter uma grande força psicológica para os combater. É preciso ter um feitio especial para se fazer música em Portugal. É mais fácil ser-se músico no estrangeiro.

U@O - Como define a sua personalidade?
L.C.- Tenho dificuldade em ser subalterno, mas prazer em sê-lo quando encontro pessoas que sabem mais que eu, porque sei que vou aprender. Não gosto de me vergar ao poder político. Considero que os políticos existem para eu os utilizar, e não para eles me utilizarem a mim. Serei talvez uma pessoa propícia aos conflitos. Às vezes penso no que ficou para trás, para ver o que posso melhorar no futuro. Só chego a uma conclusão que me deixa descansado: os conflitos que eu tenho são directamente proporcionais à quantidade de ignorantes que conheci.

 


   
  Melhor música para a Beira Interior
 

U@O- Quais seriam as implicações da abertura de uma licenciatura de música para a cidade da Covilhã?
L.C.- Se eu tiver na Covilhã a Associação Cultural, a Escola Profissional e a UBI posso pôr aqui mais professores de música. O professor de música não precisa de vir dar aulas aqui, ir dar aulas a Évora ou Faro. Tem aqui três sítios onde pode trabalhar, e pode radicar-se na Covilhã. Tendo professores e alunos radicados, posso ambicionar, em vez de ter uma orquestra de alunos como existe agora, ter pelo menos uma orquestra semi profissional na Covilhã.

U@O- Que actividades tem desenvolvido na Associação Cultural da Beira Interior?
L.C.- Há duas instituições e as pessoas confundem. A Associação Cultural da Beira Interior e a Escola Profissional de Artes da Beira Interior. A Escola Profissional tem a orquestra sinfónica e a Associação tem o coro.
O projecto Zéthoven também pertence a esta associação. Aqui apanhamos as crianças com o intuito de detectar valores. Conseguimos que elas paguem uma cota mínima mensal de 7 mil escudos. É uma cota acessível, porque se forem para o Conservatório da Covilhã, pagam 18. Contudo, a associação tem várias actividades, e um plano de gestão, em que umas actividades compensam outras. O Conservatório recebe à cabeça. Tem 50 alunos, o ministério manda dinheiro para 50 alunos, independentemente de serem bons ou maus. Nós aqui temos projectos. Se os projectos não forem viáveis e derem maus resultados, obviamente as empresas não patrocinam. Quando damos algum passo temos que pensar sempre. Um conservatório não, pode ser medíocre e não apresentar resultados musicais rigorosamente nenhuns.

U@O- Quem culpa por essa mediocridade ?
L.C.- A culpa é sempre das direcções administrativas, nunca dos professores nem dos directores pedagógicos. A maioria dos conservatórios, a nível administrativo, está cheia de gente ignorante.

U@O- Acha que isso acontece porque as pessoas não têm conhecimentos no campo musical?
L.C.- Primeiro não têm conhecimentos musicais, independentemente de poderem dizer que a área deles é a gestão ou outra. As direcções administrativas têm de ter o mínimo de sensibilidade para apreenderem a parte musical. Ninguém vai a um concerto ver o director administrativo mostrar o resultado da gestão dele, mas sim para ouvir música. Há gestores que fazem cartazes em fotocópias porque fica mais barato. Nem sequer uma noção de marketing existe para promoção das actividades. Para a música em Portugal evoluir, muitos dos directores de conservatórios deviam ser conhecidos pela sociedade, só daquelas páginas de jornais que têm umas cruzes pretas. Porque realmente são autênticos cancros para a música. Isto é um problema nacional.

U@O- Como é que define o estado da música em Portugal?
L.C.- Por exemplo, em relação à música "pimba", acho que a culpa não é de quem canta. Aquilo dá dinheiro, possivelmente quem a faz não tem capacidade para fazer melhor. Os culpados são quem compra. A cultura do povo é que permite que esse tipo de música vingue.
Em relação à música clássica, atravessamos um problema com os estrangeiros. Os lugares nas orquestras estão sempre vedados aos jovens por causa deles. Nós somos o caixote do lixo da Europa. Por exemplo os russos, os eslovenos, os húngaros que vêm para Portugal são os piores. Quando saem do seu país, não pensam em vir directamente para Portugal. Primeiro fazem testes nas orquestras da Suíça, Bélgica, França, e só quando não têm lugar é que vêm para cá. Claro que há músicos estrangeiros que eu gostava de ter cá na Covilhã, mas não temos possibilidades económicas para lhes pagar.

 

 




  Percurso de um artista

Luís Cipriano nasceu a 25 de Setembro de 1964, em Castelo Branco. Foi nesta cidade da Beira Baixa que o maestro e compositor iniciou o seu percurso musical, através do incentivo do professor Carlos Gama. Corria o ano de 1988, quando se formou em Lisboa com o Curso Superior de Composição orientado pelo Prof. Cristopher Bochman.
Nos dois anos seguintes, foi na Escola Eugénio de Castro em Coimbra, que realizou o estágio pedagógico.
Nos últimos 15 anos, a paixão pela composição e o seu vastíssimo repertório, tornou-o merecedor de vários prémios distribuídos por diversos concursos. Em Fevereiro de 1997, foi distinguido pela Union Grand-Duc Adolphe do Luxemburgo, que lhe atribuiu a "Medalha Especial de Ouro", pelo seu percurso musical
Actualmente, é Maestro Titular da Orquestra Sinfónica da Escola Profissional de Artes da Beira Interior, Maestro do Coro Misto da Covilhã e Presidente da Associação Cultural da Beira Interior, instituição a que se dedica sem receber qualquer remuneração.