Por Marco António Antunes


Os antigos combatentes da Guerra Colonial recordaram locais e momentos através da exposição "Guerra Colonial- uma história por contar, patente na Biblioteca Municipal

"Guerra colonial - uma história por contar", a exposição itinerante do Museu da Guerra Colonial, abriu ao público no passado dia 5 de Outubro na Biblioteca Municipal da Covilhã. "A exposição encarna toda a vivência do combatente", salienta João Cruz Azevedo, Presidente do Núcleo da Covilhã da Liga dos Combatentes.
Tarde de chuva. Biblioteca Municipal da Covilhã. Dez pessoas junto ao bar contíguo à sala de exposições. Ex-combatentes conversam ou tomam café. Alguns trouxeram a esposa, um filho ou simplesmente um amigo. "Vim à exposição, porque o meu pai esteve na Guiné. Procuro conhecer a luta e o sofrimento dos ex-combatentes", salienta Ricardo Prata, 17 anos, estudante na Escola Secundária Campos Melo e natural da Covilhã.
Afinam-se os últimos preparativos. Às 15 horas, Maria do Rosário Pinto da Rocha, vereadora da cultura e educação da Câmara da Covilhã, declara aberta a exposição. Atento, o público aguarda os discursos da praxe. Estão já 25 pessoas.

"Estórias de guerra"

Anquises Carvalho, 53 anos, natural de Braga, funcionário administrativo da empresa têxtil Manuel Gonçalves, é Presidente da Direcção da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA). "Fui ferido no dia 8 de Maio de 1971 às 16h30. Rebentei com uma mina anti-pessoal. Tive oito fracturas nos membros inferiores e fiquei cego de uma vista. Passado 24 horas veio um helicóptero buscar-me", conta.
A camaradagem entre os soldados era uma prática diária lembra o presidente da ADFA. "Os soldados olhavam para mim e choravam. Colocavam moedas no meu dólman (casaco militar) para o caso de eu precisar. Isso ficou-me na memória", recorda emocionado.
"A minha missão era elevar o moral das tropas, acompanhar o dia-a-dia do soldado português e sensibilizar os nativos para a causa portuguesa", sublinha Rui Nunes Proença Delgado, 59 anos, Professor de História na Escola Secundária Frei Heitor Pinto e natural da Coutada, Covilhã. O historiador explica, com precisão, os pormenores da sua carreira militar. "Estive em Moçambique, na região de Cabo Delgado, onde integrei uma equipa do Estado Maior das Forças Armadas, com o objectivo de fazer acção psicológica junto da etnia maconde, principais nativos que combatiam Portugal", refere.

"Guerra e stress"

"Vivem sozinhos, suando frio, noite após noite, encerrando em si o drama de uma guerra que calam e só com muitas dificuldades falam dela", pode ler-se numa brochura da exposição. O ex-combatente sofre na memória o som dos morteiros, a imagem da morte do amigo de armas, o medo do ataque do inimigo.
O stress pós-traumático é a doença típica do ex-combatente. Em maior ou menor grau, todos sofrem um pouco. "O Estado deveria conceder uma maior assistência médica a todos os ex-combatentes, e em especial aos deficientes das Forças Armadas", refere António Rodrigues Antunes, 55 anos, ex-combatente em Angola, enfermeiro no Hospital da Cova da Beira e natural de Zebreira, Idanha-a-Nova.
O enfermeiro Antunes conviveu de perto com os ex-combatentes de Angola. Assistiu durante quase 28 meses à chegada dos traumatizados da frente de combate. "Prestei serviço na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Militar de Luanda. Convivi de perto com o drama da morte. Prestei assistência aos ferimentos físicos e psíquicos dos meus camaradas", salienta. Lembra a divisa do Hospital Militar de Luanda que o Estado deveria cumprir: "Salvar da morte os que à pátria dão a vida".

Até Deus não está seguro

Na cerimónia de abertura, o presidente do Núcleo da Liga dos Combatentes lembrou o horror da guerra com a frase do P. António Vieira: "Até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro". Elogiou a boa vontade do Professor José Manuel Lages. E a disponibilidade da ADFA em colaborar com a Liga.
Maria do Rosário Pinto da Rocha colocou uma coroa de flores junto ao placard dos mortos na guerra colonial e assinou o livro de visitas da exposição. "A Câmara da Covilhã sempre apoiará a Liga. Relembrar o sofrimento da guerra colonial é um dever de cidadania", assegura.
Para a História ficam os números: 30 mil soldados feridos e dez mil mortos. Do lado dos movimentos independentistas, segundo números não oficiais: 45 mil mortos, entre guerrilheiros e população civil.
A exposição "Guerra colonial - uma história por contar" é uma das mostras itinerantes do Museu da Guerra Colonial sediado em Vila Nova de Famalicão. Em 1998, celebrou-se o protocolo para a criação do que viria a ser o Museu da Guerra Colonial, entre o Externato Infante D. Henrique em Ruílhe, Braga, a ADFA e a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão.
Tudo começou em 1989. José Manuel Lages, docente de Antropologia no Externato, dirigiu 30 alunos num inquérito sobre a guerra colonial. Desde 1992, o Externato Infante D. Henrique colabora com a ADFA. O projecto pretende "abrir o diário de guerra do ex-combatente: ordenar e recolher 'estórias de vida' sobre a guerra colonial", explica José Manuel Lages. O Museu da Guerra Colonial encontra-se sediado na Central de Transportes de Vila Nova de Famalicão.





PERFIL José Manuel Lages
 
José Manuel Gonçalves da Silva Lages, 47 anos, natural de Viana do Castelo é professor e Director do Externato Infante D. Henrique em Ruílhe, Braga. Colaborador desde 1992 da ADFA, é responsável científico do Museu da Guerra Colonial. Prepara a sua tese de doutoramento: "O itinerário do combatente português na guerra colonial". É um apaixonado pela História da Guerra Colonial e pelas estórias de vida dos ex-combatentes. Mas curiosamente não foi combatente. Por isso, diz ser uma personalidade "acima da suspeita e independente". Representou Portugal na FMAC, organismo mundial que representa os deficientes das Forças Armadas junto da ONU. Colaborou na tese de doutoramento em Cinema do investigador belga Yo William: "Ninguém nasce soldado".
Licenciado em História pela Universidade do Porto, esteve ligado às Comemorações do Achamento do Brasil. Foi comissário científico da exposição "O brasileiro torna viagem". Tem participado em vários congressos sobre a colonização portuguesa no Brasil. Coordena, actualmente, uma investigação sobre a emigração minhota para o Brasil no Núcleo de Estudos de História das Populações e Sociedade (NEHPS) da Universidade do Minho. É Mestre na área de História da Colonização Portuguesa no Brasil com a tese: "A confraria de nossa senhora do Carmo de Lemenhe e o papel dos brasileiros no vale do rio Este" (1998)





"Descolonização do pé descalço"
 
A maioria dos ex-combatentes, contactados pelo URBI @ ORBI, criticam o processo de descolonização. Rui Delgado defende que "foi horrivelmente feita, por culpa das forças de esquerda do 25 de Abril, que não souberam precaver o futuro". Delgado chama-lhe "descolonização do pé descalço", opinião que diz ser semelhante à do Professor José Hermano Saraiva. Rui Delgado acredita que "os sucessivos governos beneficiaram a FRELIMO, no caso de Moçambique, e o MPLA em Angola". Para Anquises Carvalho, "a descolonização foi demasiado rápida. Não houve responsabilidade directa dos partidos de esquerda, foi uma bola de neve que perdeu o controlo".
A vereadora da Câmara da Covilhã também acredita que a descolonização foi errada, por parte das forças políticas da altura. "Deixámos desprotegidos os nativos das colónias", salienta.