Anabela Gradim

Um nó



Confesso. Estou siderada. Consternada. Doente mesmo.
Os talibãs da minha rua não sabem de cor o corão nem usam burka. Não passam o dia de cócoras a abanarem-se como autistas. Comem bons bifes ao almoço. Gostam de cinema. Foram vacinados. Tomam antibióticos. São todos modernaços. Objecta-lhes a consciência e são contra a pena de morte. Defendem os direitos dos animais, dos ratos, das bactérias e leveduras. Têm tabus alimentares: não comem favas nem pisam feijões. Já se sabe: eu também. Por isso nestes últimos dias na minha cabeça deu-se um nó.
É que os talibãs da minha rua ficaram intimamente felizes com o massacre de 11 de Setembro. Acharam que os americanos estavam mesmo a pedi-las. Ateus empedernidos, até passaram a simpatizar um bocadinho com os estudantes de teologia, e a achar altamente exagerados os rumores que contra eles correm. Manobras do imperialismo americano, como é evidente.
Os talibãs da minha rua viram os aviões explodir, pessoas a saltarem das janelas do world trade center, as torres a desmoroarem-se sobre o pessoal dos socorros, e sentiram-se intimamente felizes e justificados. Sabem fazer contas: doze mil pais que choram os seus filhos. Seis mil viúvos e viúvas. Doze mil órfãos. Mas para eles nada disso conta. Os talibãs da minha rua intuem que isto não está bem, e portanto tentam às vezes disfarçar - mas nem sempre conseguem. A alegria íntima que os consome brota-lhes da fundura da alma como um riacho borbulhante.
Pensava que os talibãs da minha rua não gostavam do imperialismo americano e do seu capital porque queriam uma coisa melhor. Enganei-me. A sua dialéctica é puramente negativa e não teleológica. Associar-se-iam com quem quer que fosse na sua jihad contra... contra o quê? Nós, claro. A sério. Se me contassem, há uns meses, eu não acreditaria. Mas culpa é minha. Devia ter desconfiado. Os sinais estavam todos lá. E permanecem. Ainda há dias li algures a veemente condenação dos atentados, que saiu desta forma: "O terrorismo fundamentalista é injustificável"! Como se assassinar a tiro, pelas costas, septuagenários heróis da luta anti-franquista o fosse.
Peirce dizia que "ser moral" é uma questão de hábito e convicção - de boas maneiras, digamos - e tinha muito mais razão do que se pensa. Essa gente cultivou negros hábitos durante muitos anos. Agora não podem fazer nada. Essa satisfação que sentem, não conseguem evitá-la. Não se muda de hábito como quem muda de camisa. É por isso que vai ser mais fácil perdoar aos talibãs da montanha que aos da minha rua.
Também choro entes queridos.