Catarina Tomás

Direitos Humanos, Milosevic e os Ausentes



A Declaração Universal foi proclamada pelas Nações Unidas como "um ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações", tendo sido criada numa altura em que ainda eram recentes as memórias das atrocidades causadas pela xenofobia e a intolerância. Num período em que a Humanidade e os Estados necessitavam de uma "Carta de Direitos" para sua protecção e a reconstrução do mundo devastado pela Segunda Guerra Mundial. Apesar da forma poética e do seu carácter não vinculativo para os Estados, a Declaração aprofunda os Direitos Humanos dos pontos de vista jurídico, político e social, como até então nunca havia sido feito, mesmo em constituições nacionais.
A Declaração Universal é o primeiro texto de Direito Internacional que consagra a indivisibilidade, interdependência e ausência de hierarquização entre os direitos e o seu exercício, avançando a perspectiva de que privar alguém de um direito em nome de outros é por em perigo todos os outros.
Infelizmente, nem sempre o avanço das normas jurídicas corresponde a uma efectiva protecção dos direitos humanos. Apesar dos progressos realizados, a sua implementação é imperfeita, demasiado dependente das razões "de Estado", da vontade política dos governos, dos seus interesses económicos e estratégicos, ou dos recursos (in)disponíveis. Por outro lado, o discurso e terminologia dos direitos humanos são descaradamente "boicotados" pelos governos, assessorados de relações públicas e enquadrados (de acordo com as "necessidades") por poderosos lobbies políticos, económicos e/ou militares.
Mantêm-se a duplicidade de critérios dos Estados hegemónicos quanto à política internacional de direitos humanos, inclusive na sua estrita concepção ocidental.
Os EUA têm tido um papel muito "importante" (preocupante?), sobretudo no período pós- "guerra fria", jogando xadrez internacional, isto é, retirando apoio a "ditadores amigos", patrocinando a sua substituição por regimes democráticos liberais, mas a condenação das ditaduras só acontece, quando tal não colide com interesses geo-económicos e político-estratégicos americanos (quem não se lembra da intervenção, liderada pelos EUA, para derrotar, no Médio Oriente, movimentos democráticos, como o liderado por Mohammed Mossadegh, em 1953, no actual Irão, sobretudo por ter nacionalizado a indústria petrolífera). A pressão em prol dos direitos humanos só é defendida até ao limite da não coincidência de interesses, quando não se põe em perigo as relações político-comerciais bilaterais.
O dia 12 de Fevereiro de 2002 fica na história da humanidade como o dia em que, pela primeira vez um ex-chefe de Estado é acusado e julgado pela Justiça Internacional. Slobodan Milosevic é acusado de vários crimes, onde se destacam, o crime de genocídio morte e deslocação de milhares de pessoas nas guerras, que ocorreram entre 1991-1999, na Croácia, Kosovo e Bósnia. Deste julgamento mediático destaco vários aspectos e umas tantas questões. Primeiro, o não reconhecimento do réu da legitimidade e da legalidade (uma das razões apresentadas pela defesa é o facto das testemunhas de acusação poderem prestar depoimento à porta fechada ou sob anonimato) do Tribunal Penal Internacional; segundo, a possibilidade (algo remota ou quase impossível) de Bill Clinton e Tony Blair serem testemunhas de defesa, já que teriam conhecimento dos crimes pelos quais Milosevic é acusado e mesmo assim continuaram com a ronda de negociações e acordos, o que faz deles cúmplices. Terceiro, e último, porque é que Ariel Sharon não é julgado pelos crimes contra os palestinianos, pelo episódio, por exemplo, nos campos de Shabra e Shatila, em que se massacraram 3 mil famílias de refugiados, em 1982-83? Porque é que Bill Clinton não é julgado pela morte de milhares pessoas que dependiam dos medicamentos produzidos por uma fábrica que ele ordenou bombardear no Sudão, mesmo sem provas concludentes? Porque é que os líderes da Unita não são julgados pelas atrocidades cometidas (ainda a acontecerem) em Angola? Porque é que os terroristas do UCK, treinados e municiados pelos Serviços Secretos Ingleses e pela CIA, não são julgados pelos crimes mais hediondos que cometeram no Kosovo? Porque é que os representantes máximos do FMI não são julgados pelas desigualdades sócio-económicas que provocaram, sobretudo nos países do "terceiro mundo" e mais recentemente, no mediático caso da Argentina ? Porque é que não...?
É impreterível a acção, a intervenção, o sentimento e a crítica contra estas e todas as outras situações similares!