"Da Minha Voz" na Quinta do Sol

U@O-Este último disco, "Da Minha Voz", que saiu em Outubro, foi gravado aqui no Paul?

NL- Foi gravado numa quinta aqui perto chamada Quinta do Sol, com músicas do Chico César, e letras do Tiago Torres.
Na preparação do disco estivemos no Brasil quatro meses, durante os quais dei alguns concertos. São Paulo é uma cidade muito cultural. Passava a vida a ver concertos, a ir às favelas ver as escolas de Samba, e a trabalhar com o Chico e com o Tiago. Quando vim para Portugal, a minha editora de então, achou que o disco era demasiado intelectual e pôs uma série de entraves.
Nessa altura entrei em contacto com uns amigos do Paul que já conheço há 20 anos, o Benjamim e a Leonor, e vim para cá. Gostei tanto que fiquei.
Depois, houve uma editora que se mostrou interessada no meu trabalho. Como não queria regressar a Lisboa, os músicos vieram para cá.
Instalámo-nos na Quinta do Sol, que é do Benjamim e da Leonor e aí gravámos 80 por cento do disco. Como havia outros artistas convidados, o Tito Paris, o Pedro Joia, Ney Matogrosso, Carlos Guerreiro, Jorge Palma e Chico César, tivemos de ir para Lisboa concluir o trabalho.
Foi a primeira vez que assumi a produção de um trabalho meu. E acho que me dei bem. Penso que não há verdades absolutas sobre nada. Por isso acho que um bom produtor deve saber ouvir os outros. É assim que se faz um trabalho, não é de chicote.

U@O-Como é estar agora a viver no Paul?

NL- É uma maravilha, aqui é que estou bem. Para me sentir equilibrada, preciso de viver num sítio assim, ouvir os pássaros, olhar para a Natureza. Tenho de me inspirar, de me sentir abençoada.

U@O-E como é o Paul?

NL- O Paul é tudo. Há dias em que é um sol imenso dentro de mim, outros em que é um refúgio.
É uma comunidade onde se conversa muito. Ainda existe o hábito de as pessoas se juntarem a beber uma cevada ou uma jeropiga e falarem de tudo.
Há também um grupo de pessoas que está a dinamizar a vila, especialmente a Casa do Povo. Existe uma escola de artes com diversos ateliês. Agora estou a fazer um ateliê com miúdos, e brevemente vou começar um ateliê de cantoria com idosos.
Temos muitos projectos. Em breve virá um músico percursionista que faz instrumentos a partir de produtos recicláveis. Vem também uma dançarina de danças orientais, que esteve muitos anos no Nepal e na Índia. Vamos continuar a convidar pessoas para participarem nestes ateliês e ensinar coisas novas.

U@O-Desde que vive no Paul já surgiram novos projectos...

NL- Sim, a minha amiga Leonor ensinou-me a tocar adufe, comecei a aprender as músicas do Paul e agora cantamos juntas. Como o Benjamim tem uma banda, o "Milho-Rei", resolvemos cantar com eles. E assim nasceram dois projectos.
É também uma forma de estar em contacto com a população, de ir ouvindo e de estar dentro do que se passa numa vila pequena como o Paul.

 





Né Ladeiras e a amiga Leonor
Né Ladeiras fala "Da Minha Voz"
"Na música tudo é possível"

Numa tarde solarenga encontrámos uma mulher com música na voz. Conhecedora dos cantares tradicionais de Norte a Sul do País, Né Ladeiras aprecia especialmente o ritmo da Beira Baixa. De Trás os Montes herdou uma força da terra, mas foi o Paul que elegeu, há sete meses, para viver, compor e cantar.

Por Ana Maria Fonseca e Mariana Morais


Urbi@Orbi- Começou a cantar aos seis anos. Cresceu num ambiente familiar ligado à música?

Né Ladeiras- Lembrando-me da infância, onde havia sempre música, ou nos gira discos, o meu pai a tocar viola, a minha mãe a cantar, o meu avô, que também tocava muito bem, de certeza que isso me influenciou, mas também acho que já nasci com este dom.

U@O- Porque é que entrou para a brigada Victor Jara?

NL- Foi uma ideia que surgiu num café em Coimbra. Tinha 13 anos. Estávamos a tocar e achámos que devíamos formar um grupo. Tocávamos essencialmente música latino americana, e todos tínhamos um grande respeito pelo Victor Jara. Para nós simbolizava o poder da mensagem de uma música, de alcançar pessoas e transmitir-lhes coisas importantes. Tendo em conta as circunstâncias da sua morte, no Chile de Pinochet, decidimos que ficaria o nome Victor Jara.
Depois participámos com o Movimento das Forças Armadas (MFA) nas campanhas de dinamização cultural. Foi aí que tomámos contacto com a música tradicional portuguesa. Começámos a incluir no repertório, não só musicas chilenas e da América latina em geral, mas também cantares portugueses.

U@O-Lembrando essa altura, o que é que lhe vem à memória?

NL- Sentíamos que fazíamos parte da História. Tínhamos uma alma e um ideal que era muito maior do que alguma coisa que pudéssemos ter sentido até então. Era uma época de sonhos e de luta, de querer conhecer, saber muitas coisas, porque nós não sabíamos nada. Na altura, para quem é adolescente, estar a viver essa época conturbada da revolução, podermos concretizar e experienciar isso nas nossas vidas, no nosso dia a dia, foi extremamente importante.
Fomos para o interior do País e deparámo-nos com sítios que nem calculávamos que existiam. Pessoas muito generosas e num estado de pobreza tremendo. Nós, como estudantes, íamos dar aquilo que de melhor tínhamos e sabíamos. Ajudávamos as pessoas a ler, a serem mais esclarecidas, dizendo que havia outros caminhos, que a época das trevas tinha acabado. Em contrapartida, tínhamos aquilo de melhor que as pessoas nos podiam dar: a sua cultura, que era também nossa, só que nós, não tínhamos acesso a ela porque o regime não admitia.
O regime inventou uma coisa que eram as ranchetas. Um grupo de pessoas, com saias rodadas, tocavam uns acordeões, e era o vira. Mas nunca iam à raiz. Porque a raiz é muito mais sábia, muito mais poderosa. Fiquei particularmente impressionava com as polifonias da Beira Alta, com os cantares alentejanos.
Foi um mergulho total na cultura portuguesa.

U@O- Em relação a essas terras mais pequenas, as pessoas tinham consciência da revolução ou estavam à parte do que se estava a passar no País?

NL- Dependia dos sítios. O Alentejo, por exemplo, era mais politizado. Em termos de comunidade social, as pessoas funcionavam de outra maneira, eram mais conscientes. embora, sabendo que havia um preço muito grande a pagar devido à repressão.
No norte, havia um problema de comunicação muito grande, porque se tratava de populações muito mais pequenas. Havia também os caciques. Cruzámo-nos muitas vezes com eles, que nos ameaçavam das mais variadas formas. O poder da igreja era também muito forte. Foi aí que eu comecei a rever a minha posição em relação à Igreja. Achava que não era possível os padres estarem do lado dos ricos e dos mais poderosos, dando a ideia que havia castigos impressionantes, para além dos reais, que eram a prisão, as perseguições, castigos para além da morte, ou seja, quando atingissem o paraíso e o purgatório, iam ser julgados. Isso fez-me muita confusão, porque parecia que estávamos ainda na Idade Média.
Essas pessoas tinham dificuldade em aceitar uma abertura, uma nova situação. Houve muitas que aderiram, outras, muito lentamente, foram aderindo e outras simplesmente não conseguiram porque, culturalmente, já não fazia parte do seu horizonte.
Enfim foi um período de medição de forças entre aquilo que era novo e aquilo que já estava velho, muito velho e caduco.

"Na Beira Baixa, o ritmo sente-se por todo o lado"

U@O-Esse período em que percorreu Portugal e conheceu os cantares tradicionais dos povos, influenciou a sua carreira musical?

NL- Sim. Quando eu conheci todas essas mulheres e homens que cantavam, daquela forma que eu desconhecia e aquelas melodias com influencias árabes e judaicas, parecia-me uma tribo enorme, revia-me nesse ambiente. Sempre gostei de coisas simples, transparentes e verdadeiras.
Muitas vezes, nesses trabalhos de alfabetização e dinamização, recolhíamos os temas e depois tentávamos reproduzi-los, não daquela maneira ortodoxa, mas já com uma ponta de criatividade. Daí surgiram o Eito Fora, o Tamborileiro e outros trabalhos da Brigada.
Nunca estive desligada da música tradicional, embora o meu espírito quisesse experimentar coisas novas. Sempre tive muita curiosidade porque acho que na música, tudo é possível.

U@O-Podemos dizer então, que músicas como as do Eito Fora foram um salto qualitativo em relação às ranchetas?

NL- Sim, sem dúvida. Porque as ranchetas existiam para divertir os turistas, e para as pessoas não pensarem em nada. Uma pessoa ao ler uma música do Eito Fora, que é uma coisa tão simples, percebe que há ali trabalho envolvido, um esforço. As pessoas do povo explicam o seu quotidiano através da música. Estou-me a lembrar de uma que se chama "Alvisseras", com uma parte muito engraçada que é "Ai acorde senhor prior, ai acorde, não durma tanto, nós já vimos da igreja, vamos para o espírito santo".
Isto é uma forma um bocado jocosa de criticar os priores naquela altura. Ao povo exigia-se dinheiro para a igreja, os pecados tinham de ser redimidos com não sei quantas orações e os padres pouco mais faziam.

U@O-É também um pouco trazer a público, de alguma forma, a cultura oral, uma vez que foram coisas passadas de geração em geração?

NL- Sim, e muita coisa se perdeu. Este trabalho começou com o Michael Jacometti, o Lopes Graça, e o padre Mourinho. Um padre de Miranda do Douro, diferente dos outros, que dedicou toda a sua vida ao entrelaçar dele, que era o representante da igreja, com as populações. Foi ele que recuperou o Mirandês.
Infelizmente, muita coisa se perdeu. Muitos informadores morreram. Mas o trabalho que está feito já é valioso. Temos um património cultural. Acho que a música é o campo que tem sido menos apoiado. As pessoas cantam e tocam porque gostam, por carolice e por amor à camisola. Há pessoas no nosso país que deviam ser subsidiadas pelo trabalho que fazem, e não têm estatuto sequer.
Espero que um dia todo este trabalho seja recompensado. O Michael Jacometi foi uma pessoa muito maltratada, mesmo depois do 25 de Abril. Nunca quiseram saber das centenas de gravações que ele tinha. Foi uma pessoa que fez muito por nós.
O Michael Jacometti é muito lembrado pelas pessoas mais velhas. Ainda se fala daquele "senhor de cabelos brancos e barbas que vinha de burro, às vezes a neve era tanta, o burro caía e ele continuava a pé". Há um carinho muito grande porque ele era uma pessoa muito amistosa e afável.

U@O-Houve alguma região em especial cuja música a marcasse?

NL- Há um triângulo que acho especialmente interessante: Trás os Montes, Beira Alta e Beira Baixa. A Beira Alta pelas polifonias que não se cantam em mais nenhuma parte do mundo. Às vezes parece que não são vozes humanas, parece que vêm não sei de onde. Trás os Montes porque tem uma forte influência árabe e judaica nos seus cantares e claro, pela sonoridade da gaita mirandesa que é deliciosa. Depois, a Beira Baixa porque é um local de ritmo muito intenso. O ritmo da Beira Baixa sente-se por todo o lado. Basta dizer que há os adufes, os bombos, e aqueles cantares que parecem vir do rio Jordão.

Vestir a música com roupas nunca antes talhadas

U@O-Mais tarde integra a "Banda do Casaco". Foi uma pedrada no charco?

NL- Foi, mas acima de tudo era uma grande escola de música. Passaram por lá quase todos os músicos que hoje estão no nosso panorama musical com algum protagonismo. A Banda do Casaco, para além de ter um núcleo meio louco, tinham ideias muito avançadas para a época.
Havia sempre a preocupação de vestir as músicas com roupas que até aí nunca tinham sido talhadas.
Acho que foi um grupo que marcou uma época e não houve mais ninguém a dar continuidade a esse trabalho. Foram tempos fantásticos, onde aprendi muito.
Depois, em 82, tinha umas músicas feitas por mim, e conheci o Miguel Esteves Cardoso que gostava muito do meu trabalho. Aí partimos para uma aventura que era o "Alhur".

U@O-Como é que foi essa aventura?

NL- Foi uma coisa muito experimental que tinha clara influência da música tradicional, mas feita por mim. É nesse trabalho que abordo, pela primeira vez, o outro lado da vida. Era o que eu achava que precisava para me preencher, não só em termos de matéria, mas também de alma e de espírito. Na altura fui tida como uma alienígena, mas não me importei nada. Tinha de falar nesse mundo à parte, exactamente o título do disco, "Alhur": em outro lugar.
Depois fiz um segundo disco a solo que não foi do meu agrado, o "Sonho Azul". Infelizmente parece ser o mais conhecido. Até gosto das músicas, não gostei foi do processo. Comecei a gravar esse disco no Mosteiro dos Jerónimos, mas depois houve uma reviravolta. A editora achava que eu devia ser mais pop, e que devia ser uma espécie de Rita Lee portuguesa. Mas eu dizia, "eu não sou isso, eu sou a Né Ladeiras". Acabei por fazer o álbum com produção de Pedro Ayres, mas já não gostava daquilo porque não era o que tinha em mente.

U@O-É por isso que acontece o desencantamento temporário com a música?

NL- Não foi com a música, mas com a indústria. É uma coisa muito complicada. Ainda hoje é, e está pior. Conseguem fazer das pessoas que são talentos e que à partida têm muito para dar, descartáveis. Não culpo quem embarca nisso porque são pessoas inexperientes. Culpo é quem já tem experiência e quer fazer dinheiro fácil com uma forma de arte como esta. Não digo que a música não sirva para entretenimento. Claro que sim, mas que seja com qualidade. Não é preciso fazer música a metro, que no dia seguinte já está esquecida.

U@O-Como foi esta fase de transição antes de regressar à música?

NL- Foi quando decidi dedicar-me à família.
Nessa altura comecei a trabalhar na rádio, em Coimbra. Era uma forma de estar a trabalhar com música dando música aos outros. Comecei numa rubrica sobre as mulheres na música. Abordei todas as áreas, do jazz, à pop, ao rock, à música popular, andava sempre a investigar.
Fiz depois algumas participações das quais guardo gratas recordações, por exemplo no ultimo disco do Zeca Afonso. Ele dizia que era o testamento dele e chamou as pessoas que queria que representassem cada fase da sua vida. Aquela mente era brilhante.

U@O-Regressou à música com a "Corsária"?

NL- Sim, apareceu a possibilidade de fazer um trabalho sobre uma actriz, que sempre viveu fora da máquina devoradora de Holywood: Greta Garbo. Eu tinha estado na Suécia uns anos antes e conheci alguns locais onde ela viveu, em Estocolmo. Era uma mulher muito misteriosa. Assumiu uma série de coisas que na altura eram difíceis, e isolou-se quando achou que não tinha mais nada para dar. Vi os filmes todos dela e despertaram-me curiosidade. Daí nasceu a "Corsária", que passou um bocado ao lado porque a editora foi à falência, pouco depois do disco estar editado.




Descobrir Trás os Montes de mochila às costas


U@O-Como surgiu a ideia de fazer um disco sobre Trás os Montes?

NL- Descobri que tinha família transmontana, meti a mochila às costas e fui para Trás os Montes. Foram dois anos de pesquisa e de contacto com as pessoas. Fui à aldeia de onde a minha avó era natural, Frexes, e depois não parei mais. Consultei documentos antigos porque queria reconstruir a árvore geneologica da minha família.
Na altura da gripe espanhola, morreram todas as pessoas da família, mas quando cheguei a Frexes ainda havia pessoas que se lembravam do patriarca Ladeiras, e da família.
Então pensei, já que estou em Trás os Montes vou continuar a minha viagem. Havia sempre uma aldeia, uma vila, que tinha uma história, pessoas...
Quando dei por mim andava lá há dois anos.
Trás os Montes, para mim, é uma pátria espiritual porque é ali que eu me vou inspirar, é dali que me vem uma força da terra.

U@O-A dada altura fez um disco sobre o Fausto, onde cantava músicas dele. Porquê?

NL- O Fausto é a minha referência. Acho que as pessoas devem ser valorizadas enquanto cá estão. Como eu admiro o Fausto, decidi fazer um disco sobre as suas músicas. Ele é uma referência para gente de todas as idades. Nos concertos dele encontramos avós, pais, filhos e netos.
Escolhi o lado que acho mais bonito, o mais interior e recôndito. Levei esse espectáculo a África e ao Brasil. Foi aí que conheci o Chico César. Quando veio a Portugal convidei-o para colaborar comigo num disco sobre as mulheres na altura dos Descobrimentos. Era sobre o mundo psicológico delas, como viviam aqueles tempos.
Fizemos um concerto na Expo que correu muito bem.
Depois começaram a surgir as músicas "Da Minha Voz". Sinto-me muito feliz por o tempo me permitir fazer estas coisas, porque podia estar no sítio errado e na hora errada e não chegar a conhecer o Chico César.