Catarina Tomás

Entre o conformismo e as opções

Foi recentemente editado no Brasil (quando já o fora no México em 1986), a obra da socióloga chilena Marta Harnecker, "A Batalha das Ideias". A autora propõe uma reflexão à dicotomia estratégica-táctica, alertando para importância da consciência de que uma alternativa ao sistema de dominação que se crítica, recusa e combate é indissociável do Poder.
Num mundo em que pensar se tornou uma exigência, pelo menos para uma minoria da população mundial, já que a maioria não tem energias para o fazer, por diversas razões: porque as condições de vida não lhes permitem; porque estão demasiado ocupados com o consumismo; porque "elegeram" uma elite que pensará por eles...A verdade é que vivemos um período de turbulência que afecta tudo e todos, inclusive a ciência e a forma de fazer ciência. Sobretudo quando as ciências sociais desenvolvidas nos países centrais, nomeadamente a Sociologia, estiveram tradicionalmente mais próximas do poder, dos países centrais, legitimando de certa forma o status quo e a reprodução da injustiça social em que ele se traduz. Harnecker, como muitos outros sociólogos e cientistas sociais, oferece-nos uma outra forma de reflexão, e neste caso específico sobre um conjunto de questões relativas à situação da América Latina, especificamente sobre Cuba, questionando interesses, e alertando para a necessidade de manutenção das soberanias nacionais, contra uma recolonização ideada pelos EUA.
Certamente, muitos não concordarão com a posição da socióloga, porque existem mil e uma formas de discordância na interpretação das teorias, e neste caso das teorias revolucionárias, e das estratégias e caminhos traçados em função dessas ideologias, que carregam, como factor determinante, o peso da cultura e da história de cada povo, diferenças em cada lugar e em cada época. Tudo isto é reconhecido como válido e importante no discurso teórico, no entanto, diante de cada caso surgem os críticos que se servem de luta travada por outros como rampa de lançamento da sua própria presença na história e na ciência. É antiquíssimo o confronto de ideias que ocultam as razões preconceituosas ou as ambições e inseguranças pessoais por posições aparentemente adversas na luta por melhores condições de vida para a humanidade e para os indivíduos.
E não teremos certamente que escolher um lado em detrimento de outro, porque há sempre duas faces de um mesmo fenómeno, de uma mesma realidade. Se a globalização permitiu, no campo da cultura, a criação de novos campos de divulgação cultural (Ásia, África ou América Latina) fora das capitais tradicionais (Paris, Nova Iorque e Londres), também permite que na produção cultural, prime o conceito de benefício mercantil, através do qual se reduz a qualidade, a variedade e a consideração por clientes potenciais que pertençam a uma minoria.
Assim sendo, é essencial analisar e debater a forma como o discurso se constrói. Além disso é difícil discutirmos uma produção científica pessoal, um conhecimento ou uma aprendizagem que possamos caracterizar como correctos, contudo a própria ciência fornece-nos instrumentos, procedimentos e técnicas de forma a fazer a ruptura com o senso comum.
Surge aqui a questão da (im)parcialidade. É usual acusar o sociólogo de parcialidade ou de distorção quando mostra sentimentos ou reacções de simpatia sobre aqueles que observa e analisa, aquilo a que Howard Becker denomina por hierarquia da credibilidade. Este autor parte do pressuposto de que o sociólogo não é neutral quando estuda a sociedade, e que, havendo sempre mais do que uma opção de valor em presença, o sociólogo tem de tomar posição e tem que estar consistente da posição que toma. Daí que se torne impreterível a auto-reflexividade, ou seja, o questionamento sistemático e permanente sobre aquilo que observamos, que caracterizamos, que estudamos. Contudo, sem nunca nos conformarmos com a injustiça, com as desigualdades sociais...pese embora as dificuldades e os obstáculos.
O saber, o conhecimento, a ciência têm de ser construídos à escala humana, e o seu resultado valerá pouco se não for calibrada pela experiência pessoal. Mesmo porque a ciência moderna caracteriza a prática quotidiana através de um debate sério e não pelo reforçar de lugares comuns. A Sociologia tem de voltar a ser a consciência da transformação social progressista, porque só "a sociologia entre todas as ciências do homem nos põe em condições de decidir aquilo que queremos fazer do que fizeram de nós. Por outras palavras: graças à sociologia, podemos doravante explorar, e em seguida racionalizar, as nossas próprias motivações. Ou noutros termos ainda: a sociologia torna-nos mais livres." (Sartre, 1969).