Carlos Silva

Meu querido amigo Jorge,

Perdi-te hoje. Nem consigo acreditar. Queria estar hoje a despedir-me de ti pela última vez, mas razões de saúde não mo permitiram. Ainda há dias falei contigo ao telemóvel e ouvi de ti um "Adeus, Carlos", que me fez pressentir o pior. E o pior aconteceu mais cedo do que eu julgava. Afinal para mim e creio que para ti a nossa verdadeira despedida foi há cerca de dez dias no quarto da tua casa, primeiro a sós contigo e depois acompanhado da Mieke, do vosso Artur e da vossa Susana Isabel, dos teus pais e do teu irmão. Custou-me muito ver o teu sofrimento e saber que tinhas que despedir-te da vida, tu que gostava tanto dela e dos que te rodeavam.
Deixaste-nos depois desta tua última luta pela vida, desse drama que, impotentes, fomos acompanhando. Não merecias isto, tu que amavas a vida, a tua mulher, os teus filhos, os teus pais e a restante família. Mais, tu que gostavas verdadeiramente e tinhas prazer em estar também com os teus amigos. Transbordavas alegria, uma alegria esfusiante que não deixavas ninguém triste ao teu lado. Aquelas gargalhadas, aquele teu bom humor e a tua boa disposição eram genuinas - todos nós as conhecíamos. Por mim jamais as esquecerei.
Conheci-te, quando chegado à Holanda como refugiado político, tu e os teus camaradas revolucionários distribuiam propaganda contra o regime salazarista-caetanista, trabalhando no Socorro Vermelho, no Angola Comité e, sobretudo, na Associação Resistência e Trabalho a consciencializar os emigrantes na luta contra o fascismo e contra o capitalismo. Recordo como tu e os teus companheiros m-l's, nas lutas internas com outro grupo também m-l, defendias que os estudantes refugiados não deviam formar uma organização ou comité separado dos trabalhadores emigrantes mas deviam integrar-se na Associação Resistência e Trabalho. Foi, com efeito, na Holanda contigo e outros companheiros desses velhos e belos tempos que, ao associar-me também na Associação Resistência e Trabalho, e continuando uma luta anti-fascista que já vinha de Portugal - tu na Faculdade de Economia, eu na Faculdade de Direito, em Lisboa - começamos a reforçar as nossas relações, vivendo intensamente os nossos melhores tempos de juventude.
As lutas entre pequenas organizações revolucionárias de então vieram a criar algumas desnecessárias e inúteis clivagens nomeadamente no seio de refugiados portugueses na Holanda. O tempo viria curar, cicatrizar estas pequenas feridas. Entre outros factores exógenos e endógenos, importa apontar os comportamentos de alguns companheiros com um sentido mais realista da vida que pautavam a sua conduta mais pelo que nos unia a todos do que pelo que nos dividia. Tu foste um dos primeiros a esbater os choques, a fazer pontes, a relativizar e até a ridicularizar aquelas lutas mais de galos que verdadeiras clivagens políticas de fundo e a procurar o lado bom dos companheiros em divergência. Para além do teu olhar crítico e divertido, sabias fixar-te no essencial e, com isso, rir e dar as tuas idiossincráticas gargalhadas que desconcertavam qualquer um - aliás um dos teus melhores e sãos contributos para superar velhas e inúteis quesílias sectárias.
Pelo percurso político e outras razões nomeadamente os projectos familiares, fomos estreitanto os nossos laços de camaradagem e amizade como combatentes da mesma causa, como colegas de Universidade e como amigos de percurso não só antes como depois do 25 de Abril - tu na Economia, eu em Sociologia, na Universidade de Amesterdão. Não só politica como pessoalmente acompanhamos a vida pessoal e familiar um do outro, sendo de recordar, em particular, com carinho recíproco, o teu enlace com a Mike, a finalização das nossas lienciaturas, o regresso da tua estadia e da Mieke na Indonésia quando ela foi fazer trabalho de campo para a tese de doutoramento, o nascimento dos vossos filhos Artur e Susana Isabel, assim como, mais tarde em Portugal, o meu casamento com a Isabel e o nascimento do meu Jorge.
Uma vez de volta a Portugal - tu para a Universidade da Beira Interior, eu para a Universidade do Minho - mantivemos e fortalecemos a nossa amizade: as visitas, ainda que poucas, na Covilhã, da minha parte, e as tuas, com ou sem a Mieke, em Braga e sobretudo em Lisboa. É certo, tomamos rumos de filiação política diferente, mas as nossas opções não nos toldaram a amizade. Não deixavas de anelar uma política de esquerda, com o PCP, mas isso não veio a acontecer. Ouvias os meus argumentos e críticas à política do PS e concordavas, mas também me dizias que o PCP necessitava de renovar-se... Eras um genuino socialista de esquerda que acreditavas num novo rumo que afinal não se concretizou. Trocamos muitas ideias sobre o presente e o futuro da esquerda em Portugal, temendo no imediato o pior, como lamentavelmente o confirmaram os últimos resultados eleitorais. Nas últimas visitas que te fiz em Lisboa e na Covilhã, não me esqueço das tuas preocupações para dentro do teu próprio partido - o PS -, mas também dalgumas inquietações sobre o meu próprio partido - o PCP - que querias ver renovado mas de modo algum enfraquecido nem dividido, recordando nós o exemplo negativo do caso do Partido Comunista Holandês (CPN) na Holanda.
Através dos nossos amigos comuns e, em particular, do Gabriel, do Jorge Simões e do José Carlos Venâncio, entre outros, antes de desceres à terra que te trouxe à vida, associo-me a esta despedida que te fazem hoje e nesta hora a Mieke, o Artur, a Susana Isabel, os teus familiares e amigos, que são muitos. Ficam para todos nós as boas lembranças do tempo que vivemos. Um grande abraço e até sempre, estendendo à Mieke e à Susana um beijo amigo e um forte abraço ao Artur que espero sejam fortes, muito fortes e corajosos para enfrentarem os próximos tempos. Do teu grande amigo.