Por Sandra Invêncio e Sónia Balasteiro



Há um muro invisível que separa os judeus e os cristãos que vivem em Belmonte


Belmonte, ano de 5762: é nesta vila que sobrevive ainda uma comunidade judaica que existe há já cinco séculos. Na tentativa de desvendar o mistério que envolve estes judeus, partimos à procura da sinagoga, símbolo evidente de uma fé enraizada durante gerações. "É ao fundo da rua, mas só ao sábado é que se encontram...lá para as coisas da religião deles!", indica um transeunte. Há um tom de crítica nas suas palavras. Daí por diante, seria sempre este o tom utilizado pelos restantes habitantes da vila, com os quais nos cruzámos, ao referirem-se aos membros da comunidade. Há um muro invisível que separa estes dois mundos.
Maria, nome fictício, explica o porquê do distanciamento existente: "Sempre fomos muito gozados devido aos nossos hábitos, religião e maneira de vermos o mundo. Por causa da crítica é que nos fechámos". O medo e a desconfiança moram nos olhos dos judeus de Belmonte, heranças que a História lhes deixou. As respostas que nos dão são curtas e ambíguas. Andamos de loja em loja à procura de alguém que nos fale do judaísmo que praticam mas todos nos indicam sempre alguém que percebe mais do assunto. São todos comerciantes, feirantes e empresários.

"À sexta-feira limpa-se a casa toda antes do entardecer; é que para nós depois do pôr-do-sol já é um outro dia e ao Sábado não se faz nada porque é dia santo", explica Maria.


Depois de vários anos a frequentar o culto cristão, os judeus já têm o seu templo



Dois horizontes, uma só vila

Os outros chamam-lhes de "marranos", que para eles é sinónimo de porco. Na verdade, a palavra "marranos" vem do hebraico "mar anos" que significa "convertidos à força". As críticas são frequentes: "Tenham cuidado com eles, os judeus só não enganam se não puderem"; "são uns egoístas, uns invejosos". Maria, serenamente, diz-nos que já estão habituados. "Fazemos a nossa vida normalmente e não ligamos, fomos cá criados e já sabemos como as coisas são". Acrescenta no entanto que "isto não implica que não haja convívio".
O muro não é recente e foi construído por ambas as partes. Diversas situações acentuaram esta subtil divisão. O caso mais marcante de que nos falaram várias pessoas foi o de Frédéric Brenner, jornalista francês a quem os judeus de Belmonte abriram as suas portas e deram os seus testemunhos. Durante o seu trabalho na vila, filmou várias práticas religiosas judaicas e declarações onde os membros desta comunidade falavam de anti-semitismo por parte de algumas pessoas. Prometeu-lhes que a película intitulada "Les derniers marranes" não passaria nem em Portugal nem em Espanha. O certo é que passou em França onde emigrantes portugueses fizeram cópias que trouxeram para Belmonte. Toda a vila viu. Resultado: as hostilidades cresceram e a desconfiança também.


Uma farsa partilhada

Numa viagem a um passado mais longínquo, Manuel Marques, pároco durante 21 anos em Belmonte, fala-nos de como mudou o rumo da história desta comunidade. Foi em 1969 que se recusou a continuar uma tradição imposta aquando da Inquisição: a de dar os sacramentos da religião católica a judeus. "Eu senti de tal forma a verdadeira fé deles num deus único, Adonai, como lhe chamavam, que não poderia continuar a participar numa farsa". Aquilo que levou a esta decisão foi o facto de os judeus realizarem as suas cerimónias secretamente antes dos preceitos católicos, principalmente casamentos e funerais, facto que era por todos conhecido.
O grande passo deu-se na década de 80, altura em que a comunidade judaica se assumiu como tal. O primeiro casamento e o primeiro funeral sem padre católico datam de 1988. Acontece que durante muitos anos estes judeus receberam os sacramentos de outros párocos de forma a evitarem ser diferentes. Segundo Antonieta Garcia, que estudou a comunidade durante mais de 15 anos e foi professora na vila, "eram católicos de fachada e judeus de coração".
A perda de contacto com os ensinamentos sagrados, sem chefes, sem livros e o facto de aderirem a uma religião em que não acreditavam levou-os a mostrar uma forma diferente da que professavam no interior. Durante séculos cresceu no seio da vila o chamado criptojudaísmo, uma tradição baseada no secretismo e na oralidade, onde as mulheres desempenhavam o principal papel. Maria revela-nos que eram elas que "sabiam toda a lei e transmitiam às filhas o que era preciso ser feito".

Oração que rezavam antes de entrarem numa igreja católica para receberem os sacramentos: "Eu entro nesta igreja não para adorar pau e pedra mas sim o Altíssimo Senhor Adonai".

Um sonho realizado

O cemitério judaico em Belmonte

O contacto com outros irmãos de fé abriu-lhes horizontes económicos e culturais. Manuel Marques lembra que "mantinham a tradição de casarem dentro da própria comunidade, que até há pouco tempo não tinha meios, o que lhes trazia dificuldades financeiras". As relações de consaguinidade eram frequentes e é normal encontrar laços de parentesco e apelidos que se cruzam. Os casamentos dentro da comunidade eram uma forma de protecção e de preservação dos seus membros, principalmente das mulheres. O antigo pároco explica-nos o motivo desta tradição: "As judias não trabalhavam para outrém, daí que o casamento significasse sobrevivência". Apesar de alguns homens terem contraído matrimónio com mulheres que não pertenciam à comunidade, não se conhece até hoje nenhuma judia que tivesse feito o mesmo.
Salomon Azoulay, marroquino judeu que visitou a vila, construiu, em 1996, a sinagoga que representou mais um marco importante na história dos judeus de Belmonte: fechavam-se as portas ao criptojudaísmo mas abriam-se as do judaísmo ortodoxo. A partir de então, o homem começava a assumir o papel que outrora fora desempenhado pelas mulheres. Actualmente, já existe uma direcção, tal como em qualquer organização, regras, livros, aulas de hebraico e até a presença de um rabino para cerimónias mais importantes.




"Conheci muito melhor a história de um povo que me interessava bastante"


"Despertamos para um olhar o outro com respeito"



Antonieta Garcia, presidente do Centro de Estudos Judaicos da Universidade da Beira Interior (CEJUBI) e docente nesta academia tem oito obras publicadas sobre o judaísmo, duas das quais são especificamente dedicadas aos judeus de Belmonte. O Urbi@Orbi falou com ela acerca da sua experiência nesta matéria e descobriu que também a investigadora tem ascendência judaica.

Urbi@Orbi - De quanto tempo precisou para conseguir entrar na comunidade?
Antonieta Garcia -
Muito tempo...Inicialmente havia uma enorme desconfiança. Ao contrário do que normalmente se diz, naquela altura, anos 70, 80, ainda existia um anti-semitismo latente. Quando cheguei a Belmonte aluguei a casa de um casal judeu, sem o saber. Mas soube-o imediatamente, porque logo me disseram em tom de alerta crítico: "então alugou uma casa a judeus?" O meu miúdo brincava com os filhos deles. Também me disseram logo: " deixa brincar o seu filho com judeus?!" As críticas eram muitas, o que explica a desconfiança da comunidade. Não foi fácil, principalmente entrar nas práticas religiosas. Consegui-o através das mulheres com quem criei grandes amizades. Eram elas, aliás, que tinham o domínio do saber e do fazer: eram as sacerdotisas. Foi um processo longo, mas muito gratificante.

U@O - Que grandes conclusões retirou desta experiência, a nível pessoal?
AG -
Conheci muito melhor a história de um povo que me interessava bastante. O que eu acho mais importante para as pessoas que estudam religiões, culturas, tal como no meu caso, é que aprendemos a ser mais tolerantes. Despertamos para um olhar o outro com respeito, quando percebemos o porquê das coisas.

U@O - O que poderá significar, na sua opinião, a presença de Jorge Sampaio na celebração do centenário da sinagoga de Lisboa?
AG -
Foi muito importante, um grande passo. Significa o reconhecimento oficial de um povo por parte do Presidente da República, que aliás também tem ascendência judaica.

U@O - Acredita que o que se passa no médio oriente poderá prejudicar os judeus de todo o mundo e em particular os de Belmonte?
AG -
Sim. As pessoas têm a tendência de demonizar apenas os israelitas mas parece-me que há demónios e anjos de ambos os lados. A comunicação social tem alguma responsabilidade nesta matéria. Creio que existem extremistas de uma parte e de outra que dificultam o processo de paz. Aqueles que já eram anti-semitas encontraram agora um bode expiatório: "Não prestam, veja-se o que está a acontecer". Logicamente que esta situação cria um medo de causa entre a comunidade judaica de Belmonte. Se eles são conotados com os demónios.