Por Carlos Borges



"A fé do povo português está numa fase de grande transição"

Urbi @ Orbi - A Bíblia reconhece um desafiador de Deus junto do Homem. Será uma expressão para afirmar a supremacia de Deus, frente à realidade do mal?

Vasco Pinto de Magalhães - Bem, não creio que a intenção seja essa. É uma consciência de uma cultura que se sente frequentemente ultrapassada e desafiada e a pôr em causa não só o seu próprio caminho e as suas convicções, como a própria ideia de Deus. Mas não é Deus que impõe nem que pede, porque isso já é um Deus demasiado terreno. Repare, a concepção bíblica de Deus do Antigo Testamento não é a do Novo Testamento, nem sequer é aquela que hoje já é mais trabalhada. Tudo depende da noção e da imagem que nós temos de Deus. Jesus Cristo vem-nos revelar um rosto novo de Deus e Ele não precisa de ninguém para se confrontar, não precisa de uma outra presença, mas de alertar as pessoas para aquilo que Ele chamou mundo, e os poderes do mundo estruturado ou não, ou mais individuais ou mais colectivos, portanto, é o próprio Homem que se pode organizar de uma forma fechada e auto-suficiente. Neste sentido, o Homem fechado em si próprio opõe-se a um caminho de libertação e com o perigo de ser exactamente o contrário.

U@O - Este fechamento do homem, não o coloca numa situação de vulnerabilidade, transformando-o num ser egoísta e maligno?

VPM - Creio que não. O Ser vulnerável não é o Ser maligno. O Homem torna-se maligno, na medida em que usa mal a sua liberdade e endeusa a realidade sem a substituição de um Deus de amor, quando põe a sua confiança, por exemplo, no bem estar e no dinheiro. O que é importante ao serviço da humanidade não pode ser o trono donde eu espero a felicidade. Não é o Homem que na sua fragilidade se opõe a Deus, porque a fragilidade pode ser até uma ocasião de sentir a Deus. É, quando não sabendo encontrar o caminho por aí, na tentação do orgulho constrói realidades, Torres de Babel, estruturas ou comunidades que se pensem auto-suficientes, então, é o Homem no seu engano de auto-suficiência que se opõe a Deus, não é o homem na sua fragilidade.

U@O - Não será esta fragilidade o caminho propício para a manipulação do Homem?

VPM - É verdade que todos os poderes, se apanham um homem mal formado, com pouca consciência crítica, vão usá-lo e manipulá-lo. Vemos como a política, por exemplo, mal usada é Satanás, porque é uma estrutura muitas vezes anónima, mas com algum rosto pessoal que me pode manipular. Na minha fragilidade de segurança podem-me começar a oferecer dinheiro, por um lado benesse, e por outro lado para fazer de mim um escravo. Orwell explica isso muito bem, nesta coisa que hoje damos uma volta esquisita, com este Big Brother. Desde 1984, explica isso: como é que um poder que até parece estar ao serviço dos outros, porque dá bem estar e dinheiro a toda gente e justiça, faz do Homem um escravo do poder. Todos os grandes ditadores quiseram ter o homem como um carneirinho, à sua disposição, desde que renunciasse a pensar. Ora, isto é maior das manipulações, o Diabo é isto, é uma figura mítica, é uma estrutura que parece boa e que até resolve imediatamente os problemas, mas com o preço de diminuir o Homem.


"Deus organiza o Caos em Cosmos"



"As religiões primitivas criaram as suas mitologias como forças de compensação"

U@O - O homem tem muitas vezes uma relação de conveniência com Deus. Ou seja, invoca-o no seu estado de aflição. Não será esta mitologia uma forma para explicar a sua desvinculação com Deus, pelo facto de não ter recebido nenhuma recompensa de algo que estava à espera?

VPM - É verdade, e por isso as religiões primitivas, e sem fazer juízos errados, só fazem parte do caminho. É como a criança, envolta nos seus fantasmas e nas suas ideias. Mas ela depois tem que crescer, e as religiões primitivas, respeitando-as enquanto tal, não é necessário ficarem sempre primitivas. Evidentemente que criaram as suas mitologias como forças de compensação, sonhando e projectando, à semelhança da alegoria da caverna de Platão, mas também de outros mitos babilónios, que no fundo eram formas de projecção que aparentemente libertavam o homem. Agora, Jesus Cristo exactamente desmitifica e desfataliza a história dizendo: cuidado com esses deuses que se vão virar contra ti, tu não te faças Deus com a intenção, por exemplo, de Nietzsche. Descobre que Deus é amor e então estás a caminho, não de um Deus do poder, mas de um instrumento do amor que diviniza e transforma o Universo.

U@O - O Demónio é também conhecido por Lúcifer. Podia descrever esta figura?

VPM - Quer dizer o fazedor de luz ou a falsa luz, ou a luz aparente, e que era um título dado ao Imperador ou Rei da Babilónia. Realmente era um poder muito enganador, despótico e dominador. Ele tomava para si esse título, simbolicamente chamando Lúcifer todos as formas de poder enganadoras, que são luzes falsas que a curto prazo se desmontam.

U@O - Temos algumas luzes falsas na sociedade portuguesa?

VPM - Temos. Sem estar aqui agora apontar o dedo a ninguém, porque todos nós temos uma costelazita disso. Quando isso se organiza em estrutura de poder, podemos dizer que há ali uma participação nesse mistério de iniquidade, a realidade do mal, isto é, daquilo que desumaniza, organizada como uma estrutura. Praticamente todos os estados humanos têm uma costela disso, e se não estão atentos, muito facilmente começam a justificar a violência, a corrupção e a mentira, ainda que em nome de uma grande causa. É um poder luciferino, é uma falsa luz, que está a resolver um problema no imediato, mas está deixar o homem inferiorizado e menor. Se olharmos de uma ponta à outra no mapa, vemos que isso existe. Não quer dizer que seja por opção, mas que é preciso desmascarar. Não foi uma opção, foi não estar atento, e não perceber que se não se estiver atento cai-se nisso.


"A grande queda é a da pessoa empoleirada, que com muito poder pode dar estoiros muito graves"

"As pessoas que pedem a eutanásia é porque se sentem sós"

U@O - Falou na queda de uma luz. Está a parafrasear o dito popular de que "quanto mais alto se sobe maior é a queda"? Que comentário lhe merece esta metáfora?

VPM - Significa que quem está muito em exposição, e em situações de muita altura, está mais fragilizado e mais facilmente se pode enganar a si próprio. Pensar, bom, para este poder manter a paz justifica-se o terrorismo. Em nome de alguma justiça atacaram-se as torres gémeas. Em nome de uma ideia de justiça se pretende destruir o Iraque. Em nome da justiça se deitou a bomba na Hiroxima, e portanto tudo isso foi feito em nome de um bem: agora um bem enganador, porque nenhum bom fim pode justificar um mau meio. Isso que é a grande queda, é aquela pessoa empoleirada que com muito poder pode dar estoiros muito graves. E, a mensagem de Jesus Cristo é esta: ninguém pense que está seguro, porque diante de Cristo ele vê cair todos estes poderes. É que eles não se mantêm diante de Deus.

U@O - Poderá Deus como Ser Omnipotente, perante este cenário da maldição do poder humano, impedir que a humanidade caia num grande caos?

VPM - Não há maldição. Há uma condição evolutiva da humanidade que precisa de caminhar. Não há maldição, porque não há uma predestinação. É a condição humana que é imperfeita, com possibilidade de se enganar, usando mal a sua liberdade, mas o maldito é bendito ou abençoado, e Deus o que faz é abençoar. Abençoar não é refazer os problemas, é transmitir-lhe a força que põe a humanidade a caminhar para o bem. Portanto o papel de Deus é inspirar a pessoa humana para que saia das situações caóticas. Deus é aquele que organiza o caos em cosmos e não é um dono, é um espírito de amor que organiza aquilo que está disperso numa realidade de comunhão, do caos disperso faz o cosmos, que é a beleza. Não o faz de forma prepotente, mas introduzindo um espírito de amor e portanto o homem também não é maldito, mas co-autor da beleza.

U@O - Como é que vê a fé cristã em Portugal enquanto sacerdote?

VPM - Vejo-a purificada em muitas instâncias. Vejo um grande desafio de reconhecimento de que afinal a fé não é um fideísmo de um Deus lá em cima. Afinal a fé que hoje a igreja pretende transmitir é a convicção de que o homem está salvo, tem futuro, e que a vida vale a pena, porque foi isso que Jesus Cristo veio dizer: a fé é a convicção que o mundo, com o cristianismo, é melhor e mais humano, de que o bem está ao nosso alcance. A fé do povo português está numa grande fase de transição que precisa de muita formação. Há também muitos aliciantes, existe a ideia de que há uma grande perda de fé, mas o que eu acho é que há uma grande crise e não é má, porque há um certo cansaço de uma fé fideísta estruturada e infantil, e à medida que as pessoas procuram uma fé mais adulta, há riscos. Mas acho que isso acontece porque estamos atravessar um momento de crise, mas não um momento de negatividade.

U@O - O senhor é membro-fundador do Centro de Estudos de Bioética. Qual é a leitura que faz dos problemas morais que a evolução da ciência suscita, sobretudo neste campo?

VPM - Os grandes desafios são os desafios éticos em relação à vida e à tentação enorme do poder e da ciência de manipularem a vida, de servirem a vida. A Bioética tenta que a ciência não manipule a vida desumanizando, mas que esteja ao serviço da vida, e de mais vida, e de uma vida mais humana. Agora, há uma grande tentação, por razões de dinheiro, por interesse, por razões até ideológicas, de usar a técnica e a ciência oprimindo a pessoa ou manipulando-a. Não é necessário que assim seja, a Bioética seria a ciência que tornaria a técnica e o saber ao serviço do homem mais humano.

U@O - Qual é a sua posição sobre a eutanásia?

VPM - É um falso problema, porque ninguém tem o direito sobre a vida do outro e é falso que a pessoa tenha algum direito sobre a própria vida. As pessoas não pedem eutanásia por ter dores, porque hoje já há alternativas em clinicas paliativas e de dor, e esta pode ser retirada. As pessoas que pedem eutanásia é porque se sentem sós, marginalizadas e desvalorizadas. Não se resolve, nem nunca se resolveu nada, matando pessoas. Resolve-se amando-as.


 




Pinto de Magalhães é autor de vários estudos sobre a religião



Três décadas ao serviço da religião Católica



Vasco Pinto de Magalhães nasceu em Lisboa em 1941, entrou na Companhia de Jesus em 1965, sendo ordenado sacerdote em 1974.
É licenciado em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa (Braga) com a tese: "A Coerência dos Fenómenos Convergentes em Teilhard de Chardin", publicada na Revista Portuguesa de Filosofia. Licenciou-se além disso em Teologia Espiritual pela Universidade Gregoriana (Roma), com a tese: "O Desejo nos Exercícios Espirituais de S. Inácio de Loiola".
Tem-se dedicado à pastoral juvenil e universitária em Coimbra e no Porto respectivamente, e ao acompanhamento espiritual quer individual quer de grupos. Tem orientado numerosos grupos em experiências dos Exercícios Espirituais segundo o método de S.Inácio de Loiola. Leccionou a disciplina Cristianismo e Cultura na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa (UCP) em Braga. É membro-fundador do Centro de Estudos de Bioética desde 1988. Mantém um programa na Rádio Renascença "Conversas com Princípio, Meio e Fim", desde Dezembro de 1994, em parceria com H. Manuel Pereira.
Em Coimbra, é o mestre espiritual responsável pela formação inicial dos jesuítas portugueses. Tem-se deslocado ao estrangeiro para encontros de formação e intervenção nas áreas de seus interesses e cargos vários.
Publicou também várias obras, "Conversas com Princípio, Meio e Fim", "O Olhar e o Ver" e "Vocação e Vocações Pessoais". Tem colaborado em várias revistas e publicações.