Por Mari Duarte


"Sempre tive uma tendência muito grande para estes trabalhos"

Urbi @ Orbi - Desde muito jovem trabalhou na costura e bordados. Quando começou a exercer esse ofício?

Conceição Moreira - Eu sempre gostei de trabalhos manuais e artesanais, desde pintura a bonecas de pano - e fiz disto o meu modo de vida. Trabalhava em casa, era uma forma de ganhar dinheiro.

U@O - Já alguém na sua família era ligado às artes? Houve alguém que a inspirasse e entusiasmasse para esse tipo de trabalho?

CM - Não, foi espontâneo. Sempre tive uma tendência muito grande para estes trabalhos. Como disse, e muito bem, eu trabalhava e trabalho na costura e bordados para ganhar o meu dinheiro, mas sempre que tinha tempo, inventava coisas que para mim eram bonitas. Eram trabalhinhos simples, bilhetes postais e quadros pintados à minha maneira, até com lápis de côr. Todos os materiais que tinha à disposição eram utilizados, todo o material do campo, até porque eu vivia numa quinta. Desde folhas secas, para fazer arranjos florais, bolotas, pinhas, eu fazia centros de Natal, figurinhas do presépio. Coisas assim que eu fazia e oferecia a familiares e amigos; outras ficava com elas.

U@O - Sei que fez um curso há seis anos, de Artes Decorativas. Como teve conhecimento do curso?

CM - O curso foi dado pela Secobeira, nas várias freguesias, e calhou ir um curso desses para o Teixoso. A Secobeira fica no Fundão e é uma cooperativa de professores. Eles organizam diversos cursos, desde a escolaridade até artes. Surgiu a oportunidade de eu ingressar num curso desses e eu fiquei feliz da vida porque aí desenvolvi técnicas. Porque o que eu fazia anteriormente era simplesmente por habilidade e imaginação.

U@O - No que é que consistia o curso?

CM - Olhe, tive aulas de formação a nível literário, portanto aulas teóricas e práticas. Informática, Português, Saúde, porque apesar de se chamar Artes Decorativas, o curso era muito abrangente e grande, oitocentas e quarenta horas. Foram portanto cerca de 8 meses a trabalhar toda a semana de segunda a sexta feira, como qualquer outro emprego. As aulas decorativas englobavam muitas coisas de que eu gostei imenso. Como por exemplo os bordados, de que eu já gostava muito e já sabia; a pintura em tecidos e vidro; trabalhos em estanho e pirogravura.


"Eu nunca repito uma obra, acho que perde o valor"



U@O - Porque é que seguiu a arte da pirogravura?

 

CM - Pela pirogravura senti sempre uma atracção muito especial porque era uma autêntica novidade para mim. Gostei tanto que num grupo de dezasseis pessoas fui a única que fiquei a trabalhar nessa área. Talvez porque já tivesse experimentado por mim mesma, um pouco de tudo o que se lá dava. Foi estimulante fazer algo que nunca tinha feito. Comecei a agarrar-me àquela actividade com muito mais afinco do que as outras. Eu ainda durante o curso comprei um pirogravador e comecei a trabalhar!

U@O - O que é a pirogravura, qual a técnica que a torna tão especial?

CM - O pirogravador em si não é mais do que um transformador de corrente. Nós temos a corrente da electricidade, e o transformador vai reduzir a corrente a uma boa percentagem. Liga-se a esse pirogravador um género de caneta à qual adaptam-se bicos próprios. Bicos esses que não são mais que esferográficas. Existe portanto uma pequena resistência junto ao bico que o faz aquecer e o torna incandescente e pronto para queimar a madeira. Há diversos bicos adaptáveis, de acordo com aquilo que eu quero fazer, uns mais finos, uns um pouco mais grossos, outros mais achatados que servem para sombrear, etc. Nesta fase é preciso muita sensibilidade e mão firme porque se se queimar em demasia é impossível corrigir. Depois tem outra particularidade, as figuras não são passadas a papel químico. Têm que ser passadas a lápis para papel vegetal e depois virado o papel e calcado novamente o desenho por trás.

U@O - Que tipos de trabalhos faz?

CM - Faço desde trabalhos simples como decorar porta jóias, bibelôs, monogramas, até trabalhos mais complexos como os bancos e as telas, que requerem mais horas de dedicação.
Os desenhos podem ser originais ou inspirados em revistas ou montagens, que faço muito. Eu nunca repito uma obra, acho que perde o valor. Nunca faço uma tela igual à outra. Mesmo que me peçam um quadro igual, eu previno logo de imediato a pessoa que ele vai levar uma alteração qualquer. Porque a cópia tira valor ao trabalho artístico. Uma obra é muito aquilo que uma pessoa é, o artista nunca se consegue repetir no mesmo trabalho. E então o artesanato nunca se pode prometer que saia sempre igual - e eu já faço questão que não saia. O que não me importo de repetir são os monogramas, as iniciais dos nomes em quadros pequenos.

U@O - E onde é que encontra todo o material para poder exercer a pirogravura?

Conceição Moreira faz desde trabalhos simples como decorar jóias até trabalhos mais complexos como bancos e telas

CM - As madeiras são feitas em casas da especialidade e só depois gravadas por mim. Para os quadros é que é preciso uma madeira própria. Depois eu mando-os emoldurar se o cliente quiser. Normalmente para os ter em casa e para os mostrar, mando-os emoldurar porque ficam muito mais bonitos. Agora o pirogravador em si, compro-o na "Aguarela", no Fundão. Já é o segundo pirogravador que tenho. Apesar de existirem poucos a fazer esta arte em Portugal, esta loja requisita este material para os cursos organizados pela Secobeira. A senhora da "Aguarela" de vez em quando até expõe trabalhos meus, precisamente para explicar para que é que servem os pirogravadores.

U@O - Como se deu o salto do gostar de fazer pirogravura à venda dessa arte?

CM - Bom, as pessoas começaram a gostar e isso foi um estímulo para mim. Familiares imigrantes foram levando trabalhos meus para pessoas amigas. Essas pessoas gostaram e foram levando para outras pessoas e hoje eu tenho trabalhos meus espalhados um pouco por todo o lado. Desde Brasil, EUA, Alemanha, Suíça... em todo o sítio onde há portugueses, tenho a impressão que existem três ou quatro trabalhinhos meus.

U@O - Sei que expôs pela primeira vez o seu trabalho de pirogravura no Centro Hospitalar da Covilhã. Porquê uma exposição?

CM - As pessoas quando viam o meu trabalho diziam-me que era uma pena eu não o expôr, porque ninguém conhece esta arte. Estimulada essencialmente por familiares e amigos que lá iam a casa e aos quais eu fazia gosto em lhes mostrar o meu trabalho, lá resolvi fazer um stock, minimamente razoável, para fazer uma exposição. E estou contente porque o meu primeiro e principal objectivo nem foi de todo a venda, foi sim ver o impacto que causava nas pessoas. E de facto causou muito boa impressão. Tanto que recebi telefonemas de pessoas a dizerem-me que era um trabalho muito diferente, a perguntarem-me como é que aquilo se faz e se é durável.


A pirogravura é um trabalho que exige paciência



U@O - Conhece alguém que também faça pirogravura?

CM - Todas as pessoas que andaram comigo no curso, de certo modo fizeram alguma coisa. Hoje não fazem porque não compraram os materiais, porque os acharam muito caros e são de facto. Os ponteiros são caros e sensíveis e queimam-se com facilidade - é isso que os faz custar muito dinheiro.
Fora daqui encontrei uma vez na Figueira da Foz, na rua do casino, umas telas encostadas à parede para vender, bem bonitas! Quadros que eu nunca tinha visto. Voltei imediatamente atrás e aproximou-se um senhor. Os quadros estavam sozinhos e o senhor estava sentado mais afastado. E diz ele "minha senhora compre, porque não encontra cá disto em mais lado nenhum. Isto é muito bonito, nem imagina como isto é feito! Leva muitas horas de trabalho. É queimado na madeira e não sai". Eu só disse ao senhor "satisfaça-me a curiosidade, onde é que o senhor aprendeu esta arte?" Ele disse que tinha vivido muitos anos na Alemanha como emigrante e que o patrão fazia estas coisas e que tinha aprendido com ele. Eu já imaginava que a pirogravura fosse de origem Alemã. Embora não tenha bem a certeza, estou desconfiada que deve ser. Todas as revistas que tenho conseguido da especialidade são alemãs. Eu sei que esta arte não é desconhecida na Suíça, nem na França, nem na Alemanha, porque as pessoas que levam os meus trabalhos afirmam que lá também há, mas dizem-me que os meus são mais bonitos, talvez por uma questão de amabilidade. Para além desse senhor que encontrei na Figueira, que realmente foi uma surpresa para mim, no final do curso que frequentei, fomos ver uma exposição na antiga FIL, em Lisboa. Lá, encontrei alguns trabalhos de pirogravura. Não propriamente quadros, como eu faço hoje, mas havia peças pirogravadas, como uma rodela de um tronco de uma árvore com uma figura gravada, almofarizes, monogramas e bancos.

U@O - Nunca lhe pediram para ensinar esta arte?

CM - Pedem. Até nos grupos que eu tenho, porque eu hoje dou formação de pintura em minha casa e bordados numa escola em Boidobra e no Centro Histórico da Covilhã e só como hobbie é que faço pirogravura. E principalmente depois de verem a exposição elas pediram-me logo para as ensinar. Mas é evidente, quando eu digo o preço do pirogravador, mais os ponteiros, mais as madeiras que são caras, mais a paciência e horas e mais horas, elas ficam um bocadinho com o pé atrás. Dizem-me logo que assim demora muito tempo. E realmente, não é num curso de sete ou quarenta horas, como se está a dar, que isso se fazia. Podia-se ensinar a técnica mas eu acho que era impossível incutir em alguém o prazer de fazer um quadro, uma obra bonita, uma coisa simples, precisamente porque a pirogravura é um trabalho moroso, exige muito da pessoa, tem muito do nosso eu. É o que tem acontecido com os meus trabalhos. Requerem muita paciência, muitas horas de dedicação e sobretudo um pouco de gosto e muita imaginação.