Por Liliana Beira



"Vivi uns anos à parte da realidade"


Urbi et Orbi- Comece por contar-nos um pouco da sua experiência como alcoólico. Quando é que começou a beber?
José Correia-
Comecei a beber na minha adolescência, devido aos preconceitos existentes, era uma maneira de estar na vida. Quem não bebesse não era homem, por exemplo. Era um hábito social. Dizia-se que o álcool aquece, dá força, energia, era um desinibidor.

U@O- Durante quantos anos foi alcoólico?
J.C.-
Não sei ao certo. Comecei em miúdo e só tomei consciência aos 38 anos.

U@O- Mas bebia por um algum motivo? Para esquecer os problemas?
J.C.-
Tal como todos os alcoólicos, eu não bebia porque era alcoólico. Bebia por causa da casa, do banco, até por causa do clube, por vencer ou perder. Eu bebia e o resto são desculpas. Mas era um bebedor social, gostava de beber. Não bebia só para me embriagar!

U@O- Quando é que se apercebeu que tinha graves problemas de bebida?
J.C.-
Apercebi- me quando me começou a fugir o mundo. Tinha graves problemas de saúde, de obesidade (cheguei a pesar 138 quilos). Já não bebia para me relacionar e para me desinibir, tinha que beber.

U@O- E de que graves problemas de saúde sofria?
J.C.-
Comecei a sentir tremores e suores frios devido à ressaca, ansiedade, e ao beber passava tudo. Aí apercebi-me. Também tinha falhas de memória e esquecia-me das coisas com muita facilidade. Não me recordo praticamente de nada dos meus 20 aos 30 anos, bem me esforço, mas não consigo. Posso dizer que vivi uns anos à parte da realidade.

U@O- - Como é que se sentiu quando tomou consciência da situação em que se encontrava?
J.C.-
Tinha vergonha. Muita vergonha, de dizer às pessoas, de procurar ajuda, porque ninguém notava que eu era alcoólico. Eu relacionava-me bem com a sociedade, sempre trabalhei sem faltar um dia...

U@O- - Nessa altura qual era a sua profissão?
J.C.-
Já era comerciante. Consegui montar um negócio por conta própria e lá me mantenho. Só assim é que consigo conciliar o serviço de voluntariado no Centro com o trabalho. Se trabalhasse por conta de outrem já tinha sido despedido. Faço mais horas no Centro do que no comércio.

U@O- - Se trabalhava no comércio, quando era alcoólico, tinha que conduzir, para distribuir os produtos, ou tinha alguém para fazer esse serviço?
J.C.-
Não tinha ninguém a trabalhar para mim. Era eu que conduzia. E na maioria das vezes embriagado. Foi por acaso e sorte que nunca matei ninguém. Nessa altura as minhas companhias de viagem eram o álcool e o tabaco.


"Os recuperados são vistos como pessoas muito responsáveis e capazes"



"O álcool é uma doença"

U@O- Quando é que decidiu fazer o tratamento?
J.C.-
A primeira tentativa fi-la aos 30 e tal anos.

U@O- Como é que correu?
J.C.-
O primeiro tratamento foi feito em casa sem ninguém saber. Ia ao médico e ele ajudava-me como podia. Eu tomava a medicação, mas assim que me sentia melhor, voltava a beber.

U@O- Há um provérbio que diz: "À terceira é de vez". Mas no seu caso, foi mesmo à segunda tentativa.
J.C.-
Sim, foi à segunda tentativa que consegui ganhar coragem e admitir que estava dependente do álcool. Mas foi muito difícil para o conseguir.

U@O- Difícil em que sentido?
J.C.-
Difícil no sentido de admitir que o álcool é uma doença e que sofremos dessa mesma doença. É difícil ganhar a motivação certa, sentir que precisamos fazer o tratamento e recear fazê-lo. Confessar à nossa própria família o problema que temos, porque normalmente o alcoólico magoa mais as pessoas que mais ama e que mais o amam. Muitas vezes, exactamente pelo facto de não se saber falar com ele, fazem-no sentir-se inferior e esta situação ajuda em muito ao atraso da admissão da dependência.

U@O- Então à segunda tentativa foi internado?
J.C.-
Sim, fui internado no Centro Regional de Alcoologia Maria Lucília Mercês de Melo, em Coimbra.

U@O- O que é que o levou a tentar a segunda vez?
J.C.-
Eu já bebia com frequência desde os 21 anos. Depois casei-me, tornei-me chefe de família, ninguém mandava em mim e a vida começou a sorrir-me (financeiramente com o comércio). Era sempre correcto com a sociedade, ainda que alcoolizado e tentei nunca denegrir a minha imagem. Mas aos 40 anos senti que estava na altura de parar, de dizer basta!!

U@O- Quando estava internado, como é que se sentia?
J.C.-
Durante os doze primeiros dias sentia-me a pessoa mais pequenina do mundo. Chorei e repensei toda a minha vida.

U@O- Mas já tinha admitido o seu problema à sua família?
J.C.-
Foi com o apoio da minha família e do meu médico que fiz o internamento.

U@O- Confessou também aos amigos, na mesma altura, que era alcoólico?
J.C.-
Não. Logo quando fui internado não. Só quando me libertei das amarras, passados esses doze dias, é que comecei a ligar-lhes a contar o que se passava e onde estava. O mais incrível é que muitos deles não acreditavam na história. Não faziam a menor ideia que eu era alcoólico!


"O nosso trabalho não é de sede, mas sim de rua"

José Correia com Águeda Mesquita, também membro da direcção do Centro de Alcoólicos Recuperados da Cova da Beira


U@O- De que é que consta esse tratamento?
J.C.-
O tratamento que fiz em Coimbra é à base de uma substância que se chama Ditidina. Funciona como a Metadona para os casos de droga. Apesar do álcool ser igualmente uma droga, só que legalizada pelo Estado, ainda que diferente das chamadas drogas.

U@O- Relativamente ao Centro. De quem foi a ideia de criar um projecto deste género na Covilhã?
J.C.-
Tudo começou depois do meu internamento. Entretanto fiz rastreios do número de alcoólicos recuperados. Falei com amigos que me acompanhavam no ritual e reuni uma centena de pessoas. Em conjunto fundámos o Centro, juntamente com alguns técnicos de saúde.

U@O- Quais são os pilares do Centro?
J.C.-
Damos acompanhamento, tanto aos alcoólicos como às suas famílias, em vários Centros de Saúde, mas preocupamo-nos bastante com a prevenção. Se hoje prevenirmos amanhã já não é necessário remediar.

U@O- Como é que fazem a prevenção?
J.C.-
O nosso trabalho não é de sede, mas sim de rua. Fazemos sessões de esclarecimento e actividades. Por vezes também recebemos denúncias sobre pessoas que são alcoólicas.

U@O- Como é que agem nessas situações?
J.C.-
Vamos directamente falar com a pessoa, contamos a nossa experiência e tentamos mostrar-lhe que estamos cá com o propósito de a ajudar. Mas as motivações são todas diferentes. Há situações que ficamos a pensar que atingimos o nosso objectivo ao falar com uma determinada pessoa e no final de contas não resultou; enquanto que outras vezes pensamos que os nossos esforços não foram os suficientes, que não conseguimos alertar esse indivíduo e no entanto aparece-nos mais tarde a pedir ajuda. Esses dias são sempre felizes. Já é muito bom quando ajudamos nem que seja uma só pessoa.

U@O- Actualmente a sociedade já encara melhor este género de associações?
J.C.-
Gostamos de pensar que sim e que contribuímos para esse fim. Nós não queremos ser rotulados, queremos os mesmos direitos. Isto é possível, pois os recuperados são vistos actualmente como pessoas muito responsáveis e capazes, porque como perderam muitos anos envolvidos na bebida, querem ganhar tudo rapidamente.

U@O- Como comenta o facto dos jovens beberem cada vez mais cedo?
J.C.-
É a situação que se apresenta com o provérbio: "O fruto proibido é sempre o mais apetecido". Mas existe um fenómeno na nossa sociedade que se baseia na ideia de que é fino beber e fumar. Antigamente era o contrário. Nos dias de hoje vemos adolescentes, principalmente do sexo feminino, em pleno dia a cambalear na rua, e não o "avozinho" como dantes. Talvez seja uma situação resultante da revolução que o excesso de liberdade trouxe à juventude, aquela vontade de fazer e experimentar tudo. Mas deviam-lhe explicar que, mais cedo ou mais tarde, vão pagar a factura dessa emancipação.

U@O- Se pudesse voltar atrás, mudava alguma coisa?
J.C.-
Provavelmente voltava a fazer tudo como fiz, mas não ia cair no mesmo erro. Iria conter-me mais. Só tenho pena de uma coisa.

U@O- E qual é essa coisa?
J.C.-
É de não poder ser um bebedor social!

U@O- Um conselho para os mais jovens.
J.C.-
Que se quiserem bebam, mas com moderação, e se conseguirem não beber melhor ainda. E espero que aprendam com os exemplos dos que já passaram por tudo isso. È esta a imagem e conceitos do Centro que tentamos transmitir. É por sentir que podemos ajudar alguém que trabalhamos com gosto e coração numa associação assim.

 




José Correia deixou de consumir qualquer tipo de álcool



Perfil



Nome: José Manuel Amarelo Correia
Idade: 45 anos
Estado Civil: Casado
Filhos: Dois filhos
Profissão: Comerciante
Segunda Profissão: Presidente do Centro de Alcoólicos Recuperados da Cova da Beira
Hobbies: Quando lhe sobra tempo para os ter são: sentar-se no sofá e assistir aos jogos do Sporting Clube de Portugal, ler, ouvir música e dedicar-se ao voluntariado no centro (que lhe ocupa mais tempo do que a própria profissão).