Por Daniel Sousa e Silva e Carlos Borges



José Travassos é natural do Fundão

Urbi @ Orbi - O que é para si o conceito de lusofonia?
José Travassos -
A lusofonia é a solidariedade entre todos os povos, através de meios pacíficos. Há que entender a existência do denominador comum - a língua. Cada um tem a sua identidade e a sua ideologia religiosa ou política, mas acima disso está o espírito que já vem do Padre António Vieira e de Agostinho da Silva, com o "Quinto Império".

U@O - Esse conceito ainda é actual?
J. T. -
Nos dias que correm, a lusofonia é mais pragmática do que teórica, por isso há que fazer uma leitura sociológica da ideia. O grande sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre, considerado pai desta teoria da lusofonia, define-a numa perspectiva da prática cultural dos diferentes países de língua portuguesa. As pessoas com o espírito lusófono sentem-se dentro desse espaço completamente à vontade.

U@O - Como assim?
J. T. -
È o espírito de aculturação, tendo por base o respeito pela diferença dos outros, sobretudo no campo linguístico e das tradições orais de cada povo. Por exemplo, em Portugal com os dialectos mirandês e o barranquenho. Não temos espírito de ocupação. Às vezes, pensa-se e fala-se muito no Imperialismo português, mas o contacto que Portugal teve com os outros povos, nunca foi por motivos de ocupação. Nós não nos procuramos impor, aculturamos. Daí que o grande espírito da lusofonia esteja na aculturação.

Urbi @Orbi - A 17 de Dezembro de 2001 foi inaugurada uma exposição de espólios de literatura lusófona. Como surgiu a ideia e a oportunidade da doação desse conjunto de livros à Universidade da Beira Interior (UBI)?
J. T. -
Consegui os livros por ter vivido em Angola durante 25 anos. Aliás, sempre gostei de estar actualizado e de ler bastante sobre assuntos relativos às Ciências Sociais e a África. Esta é a razão pela qual eu tenho imensa bibliografia e muitos documentos que precisavam de ser preservados e vi que só havia uma hipótese: a sua doação à UBI.

U@O - Como se processou a doação?
J. T. -
Algumas pessoas amigas ligadas a universidade, como o José Carlos Venâncio e Maria João Simões, ambos angolanos, incentivaram-me a fazê-lo. E assim aconteceu. A 17 de Dezembro de 2001, por ocasião da cerimónia de entrega do prémio da Fundação Oriente a José Carlos Venâncio e Adriano Moreira, resolvi fazer a entrega desses documentos. A exposição permitiu que as pessoas conhecessem o conteúdo desse espólio, que, hoje, se encontra na Biblioteca Central da UBI.

U@O - O espaço onde se encontram livros e esses documentos será o futuro Centro de Estudos Lusófonos. Qual é a sua opinião a localização do Centro de Estudos?
J.T. -
A UBI e a Covilhã são, segundo os mentores da ideia de um Centro de Estudos Lusófonos, espaços ideais para a concretização desse projecto.



"Angola podia ser um dos países mais desenvolvidos do mundo"

U@O - Vai para Angola em 1951. Qual era o ambiente político em Portugal na altura?
J.T. -
Em 1945, embora Portugal não tivesse participado na guerra, vivia num regime ditatorial, fora da maneira de ser e da mentalidade do povo português. Foi um conceito de uma sociedade que estaria fora das tradições e costumes portugueses.

U@O - Quais foram as consequências para Portugal?
J.T. -
Nessa altura, Portugal não aceitou o Plano Marshall e ficou isolado. A Europa foi praticamente destruída, mas com a implementação do Plano Marshall, desenvolveu-se rapidamente. Foi pena Portugal não o ter aceite e, por isso, auto-marginalizou-se.

U@O - Qual o papel das colónias neste cenário?
J.T. -
Temos que reconhecer que, ainda nessa altura, existe um certo tipo de colonialismo, porque a estratégia de Portugal era a não-adesão ao Plano Marshall, uma vez que contava com as riquezas dos territórios ultramarinos, que é o caso de Angola com café, diamantes, ouro, petróleo e jazidas de minerais.

U@O - E quem foram os beneficiados com tais riquezas?
J. T. -
O problema é que quem beneficiou não foi o País todo. As populações do interior viram-se na necessidade para sobreviver de emigrar aos milhares para toda a parte do mundo. Essas riquezas do ultramar português nem sequer foram aproveitadas, devido aos vários erros que vieram agravar a situação.

U@O - O que vai fazer para Angola?
J.T. -
Eu fui sempre administrador do Quadro Técnico dos Serviços de Administração Civil em Angola. Foi nessa circunstância e como bolseiro que frequentei aqui em Portugal no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), porque aos quadros de administração eram-lhes exigidos que tivessem um curso superior na área de Ciências Sociais.

U@O - Quando chega a Angola qual é o cenário político que encontra?
J.T. -
Apesar de ser um país rico, essa riqueza não se vislumbrava, porque as situações mais ínfimas, como, por exemplo, a falta de abastecimento de água.
Os produtos portugueses, como é o caso do vinho e do azeite, eram vendidos de forma exorbitante e impunham-se preços de importação de produtos angolanos para Portugal. As colónias eram consideradas grandes pólos de desenvolvimento da metrópole.

"A falta de diálogo provocou toda uma tragédia humanitária"

José Travassos foi funcionário administrativo em Angola

U@O - Como é que viu o aparecimento de movimentos independentistas?
J. T. -
A génese dos primeiros movimentos independentistas surgira no seio de estudantes universitários da Casa do Império em Portugal, criada pelo Estado Novo. Agostinho Neto, Lúcio Lara e Mário Pinto de Andrade foram grandes nomes dos movimentos pró-independência em Portugal. Parece um paradoxo. Mas devia ter sido feita uma transição política pacífica, tendo cada um a sua autonomia específica ou a sua independência.

U@O - Está a dizer que devia ter existido, numa primeira fase, uma autonomia administrativa e política para as ex-colónias e só depois a independência propriamente dita?
J.T. -
Eu defendia exactamente esse modelo de descolonização para a África portuguesa. Talvez se tivesse evitado toda a tragédia humanitária por causa da guerra. Porque faltou o diálogo.

U@O - Em 1961, os movimentos independentistas começam as lutas. Como é que os portugueses em Angola, sobretudo aqueles que estavam à frente da administração colonial, viveram essa situação com o FNLA, um partido racista?
J.T. -
A FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), surgiu como UPA (União dos Povos Angolanos), o MPLA era conhecido embora actuasse na sombra.
Enquanto que a UPA, em 15 de Março de 1961 dava início a onda de assassínio e saques às populações a partir do Norte de Angola, onde praticavam os crimes mais hediondos. Arrasou com tudo, nem poupou os povos nativos. Foram massacrados homens, mulheres e crianças de maneiras mais horríveis que existam. Portanto, era um movimento completamente alheio a Angola.

U@O - Quem eram os membros da UPA?
J. T. -
Não falavam português, não falam a língua nativa, eram povos considerados invasores, e que não conheciam a realidade angolana, por isso cometiam todas as atrocidades que se sabe. E os EUA estavam por detrás disso tudo, uma vez que injectavam apoios financeiros e militares com o propósito de depois colher dividendo da riqueza angolana.
É por isso que pergunto: quem era a figura do Holder Roberto? Mais tarde e com o fim da guerra é aceite na mesa das negociações para a independência. A partir daí deixa de ser a UPA e passa a ser FNLA.

U@O - E o MPLA?
J. T. -
O MPLA surgiu dentro do espaço territorial e com o único objectivo - a independência.

U@O - Qual foi a reacção do Governo português na altura, face a esse cenário de luta de interesses económicos?
J.T. -
A reacção foi total. Brancos, negros e mestiços ficaram indignados com aquela situação. Os próprios militantes do MPLA repudiaram a forma brutal e desumana por que passou a população inocente de todo o território de Angola. Embora também usassem a táctica da guerrilha, mas não no massacre às populações. Foi esse impacto que leva a que haja uma reacção da metrópole com a célebre frase do Salazar: " Angola em força!". A partir daí parte um primeiro barco em finais de Março de 1961, com 3000 militares a bordo, com destino a Angola. Entretanto já tinham seguido alguns militares antes que usaram a estratégia de combater o terrorismo com terrorismo.

U@O - Qual a reacção do povo português ao prolongamento da guerra?
J. T. -
Nessa altura já estava em Angola há 10 anos. O terrorismo na realidade impediu que Angola se desenvolvesse. A dada altura, a população começou a desinteressar-se por tudo quanto se passava em Angola. Depois não houve depois conjugação de esforços, não se preparam as situações. A guerra foi-se arrastando, causando mal-estar nos jovens em Portugal, porque quando se preparavam para entrar para as universidades eram chamados para o serviço militar no Ultramar e os seus sonhos eram interrompidos.

U@O - A guerra colonial foi uma estupidez do Governo português da altura?
J.T. -
Não se pode dizer que foi uma estupidez. Agora não resta dúvida que houve erro de estratégia política. Talvez devido a esse autoritarismo do "quero, posso e mando"…



"O principal problema na altura foi o receio de que os "retornados" viessem usurpar os empregos existentes"

U@O - Essa guerra, ainda hoje tem reflexos dramáticos nas populações portuguesas. Que comentário lhe merece esta realidade?
J.T. -
Não só em Portugal, mas mesmo na sociedade angolana as marcas da guerra colonial ainda é bastante presente. Por exemplo Angola estava num desenvolvimento fantástico. Hoje podia ser um dos países mais avançados do mundo. Esperemos que a paz seja uma realidade irreversível.

U@O - Dando agora um salto até à revolução de 1974. As ex-colónias foram deixadas ao deus-dará…
J.T. -
A União Soviética e os Estados Unidos, as superpotências da altura exerceram influência nessa questão. No caso de Angola, o petróleo chamou a atenção destes países, que tentaram estabelecer ligações. Infelizmente, foi fácil a esses países negociar com um super-milionário como o José Eduardo dos Santos que deixa a população a viver em miséria total.

U@O - Os interesses económicos dominaram o processo?
J. T. -
Essa é a minha opinião.

U@O - Depois da guerra colonial e da revolução de Abril há o regresso a Portugal dos chamados "retornados". Como é que estas pessoas foram recebidas?
J.T. -
Verificou-se que certas camadas elitistas, quer de direita, quer de esquerda, não viram com bons olhos o regresso em massa de pessoas, mas a população em geral acolheu-os bem.

U@O - Mas nem tudo foi um mar de rosas.
J.T. -
O principal problema na altura foi o receio de que os "retornados" viessem usurpar os empregos existentes. Naquela altura, muitos portugueses eram obrigados a emigrar por falta de condições de vida e pensou-se que os "retornados" iriam ser beneficiados pelo Governo. O que não aconteceu.

U@O - O que aconteceu então aos "retornados"?
J.T. -
Na verdade, estas pessoas vieram dinamizar muitos pontos do País. Em zonas como o Aveiro ou Trás-os-Montes, abriram muitos negócios que eram necessários para a região.

U@O - Que tipo de pessoas eram?
J.T. -
Havia gente de todo o tipo, desde o analfabeto ao professor universitário. Por exemplo, em Braga, Évora ou Covilhã muitos professores e funcionários que ajudaram a lançar essas instituições são "retornados".

"Sempre pensei regressar às origens"


Com a independência de Angola, o sociólogo viu-se obrigado a voltar a Portugal

U@O - Como foi a sua integração?
J.T. -
Eu sempre pensei em regressar às origens. Estive quase para ir para a Universidade de Évora, só que, entretanto, surge uma proposta de um homem que deve ser sempre recordado - Duarte Simões, fundador do Instituto Politécnico da Covilhã.

U@O - Qual foi a proposta?
J.T. -
Integrar os quadros administrativos dos Serviços Sociais, que estavam ainda em fase embrionária. Fui o primeiro funcionário a integrar os Serviços Sociais. Duarte Simões convenceu-me, como a muitos outros beirões, da necessidade de apoio ao Instituto Politécnico da Covilhã.

U@O - O que despoletou o desenvolvimento dos Serviços Sociais?
J.T. -
O grande passo deu-se devido à necessidade. Em 1979, um grupo numeroso de estudantes de Moçambique veio para a Covilhã e era preciso obter residências para os acolher. Duarte Simões, através dos seus contactos, consegue um subsídio da Fundação Gulbenkian. O restante dinheiro para a compra da primeira residência em Santo António veio do Governo. O antigo colégio de freiras foi adquirido e hoje é ainda um edifício útil.
Após a morte de Duarte Simões, felizmente a sua mensagem não se quebrou. Foi retomada por Passos Morgado e Santos Silva. O actual reitor tem a particularidade de ter sido o primeiro doutorado pela UBI.

U@O - Como evoluíram os Serviços Sociais até aos dias de hoje?
J.T. -
Nota-se que houve um grande investimento ao longo dos anos. No início existia só um bar e agora existem vários bares e cantinas. A nova residência que vai servir o Pólo de Ciências Sociais e Humanas está quase construída. Há algumas situações que não são óptimas, mas isso é normal. Penso que a gestão é feita de forma correcta.

U@O - Está reformado desde 1996. O que faz habitualmente para passar o dia?
J.T. -
Não ando por aí a oferecer os meus serviços. Quando me solicitam para colaborar com várias entidades, eu estou sempre disponível. Aparte disso, passo muito tempo a ler, a ouvir música clássica. Uma das minhas paixões é viajar, ainda há pouco tempo estive em Barcelona. Só que não as considero passeios, mas visitas de estudo.

U@O - O aumento de propinas é um facto consumado. Qual o seu comentário?
J.T. -
A UBI, tal como as outras universidades, precisa de criar receitas próprias. Os Serviços Sociais podem angariar algum dinheiro com a exploração dos bares, mas não é suficiente. Eu não, de certo modo, sou contra o aumento das propinas, porque sou uma pessoa com um espírito economia social. uma vez que 57 por cento dos empresários foge aos impostos, uma forma de apoiar os alunos seria através do mecenato.

U@O - E os custos adicionais para os alunos?
J.T. -
Quem está matriculado na universidade tem de ser responsável. Não se pode desperdiçar dinheiro. Para quem não tiver sucesso o melhor será talvez procurar outro tipo de emprego. A verdade é que o Ensino Superior tem de ser encarado de forma diferente pelos alunos.

U@O - Em Julho de 1955, o Jornal do Fundão (JF) foi suspenso por publicar um artigo sobre um prémio literário atribuído a Luandino Vieira, escritor angolano. O que se passou?
J.T. -
O JF foi sempre a voz das populações espalhadas pelo mundo. A Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu a Luandino Vieira o prémio, mas a censura proibiu a imprensa de o publicitar. O JF decidiu publicar na mesma uma notícia sobre o assunto, o que lhe custou seis meses de suspensão de publicação.

U@O - Quem é Luandino Vieira?
J.T. -
O primeiro escritor angolano a escrever em crioulo e um amigo de longa data. Actualmente, reside no Porto, padecendo de uma doença grave. A última vez que me encontrei com ele foi em 1991, quando o JF lhe prestou homenagem, no Fundão.

U@O - Qual a importância deste escritor?
J.T. -
A conferência que Luandino Vieira proferiu na sua vinda ao Fundão em 1991 foi a semente da actividade de lusofonia que se verifica na região e, em especial, da ligação da UBI a este movimento.

U@O - Há a ideia corrente que o projecto, pelo menos no que concerne à criação do Centro de Estudos Lusófonos, está parado. O que poderá ser feito para combater esta tendência?
J. T. -
Eu não estou, neste momento, ligado directamente à UBI. No entanto, há laços que nunca se quebram. Não acredito que o Carlos Venâncio, a pessoa responsável pelo Centro, vá desanimar. E eu também não. A possibilidade futura passará, talvez, pela criação alternativa do Instituto de Estudos Lusófonos.




Apesar de reformado, José Travassos continua a desenvolver estudos no campo da Sociologia



Perfil



José Torquato Salvado Travassos, de 72 anos, é natural do Fundão. O sociólogo tem várias obras publicadas, entre as quais A Toponímia do Fundão e Indústria de Lanifícios do Fundão. É um dos fundadores, em 1979, dos Serviços Sociais da actual Universidade da Beira Interior. Tem feito muito esforços para que a lusofonia singre na Beira Interior.