“A nossa missão é conservar o espólio, investigá-lo e divulgá-lo”
Entrevista com Elisa Pinheiro
“O Museu de Lanifícios preserva a memória dos covilhanenses”

A directora do Museu de Lanifícios acompanhou-o desde os seus primeiros passos. Agora fala do novo núcleo que deve abrir ao público em 2006.

Por Ana Maria Fonseca e Daniel Sousa e Silva


Urbi@Orbi- Para quando a inauguração do novo Núcleo do Museu, situado na antiga fábrica José Mendes Veiga?
Elisa Pinheiro - O edifício está em vias de conclusão. Já transportámos para a área de reservas algumas máquinas de grande porte que estão agora a ser montadas.
No entanto o núcleo abarca duas alas. Uma delas está adstrita ao Centro de Documentação/Arquivo histórico e, a outra ala é o Núcleo Museológico. O Centro de Documentação/Arquivo Histórico, muito provavelmente para Abril, começaremos a fazer a transferência, e também a nossa instalação nos novos gabinetes. Depois tudo o que é da parte musealização irá certamente implicar cerca de dois anos de trabalho longo e moroso.
Se tudo correr bem, e se conseguirmos os projectos aprovados nos timings previstos é provável que em 2006 esse novo núcleo esteja já aberto ao público.
Na museologia é necessário elaborarmos um programa de base que tem a ver com os fundamentos do museu, o que é que o museu vai expor, no fundo é toda a caracterização do espólio, que, do que já deu entrada, está todo inventariado. A Real Fábrica de Panos chega até aos inícios do século XIX, e dá-nos a visão do que era uma grande manufactura, do Estado. Agora é necessário ver-mos como era uma grande fábrica que lhe sucedeu.

U@O - Que papel desempenham os achados arqueológicos do local encontrados no novo núcleo e que aí ficarão integrados?
E.P. -
Uma das características do nosso museu é que os dois núcleos complementam-se um ao outro. Acaba por ser a musealização in sito. No primeiro são as estruturas ligadas às caldeiras de tingimento, é interessante porque há ali também uma linha de continuidade, as caldeiras a fogo directo. O que vamos encontrar no novo núcleo são as estruturas em tijolo das caldeiras também para tingimento, mas já numa segunda fase, com uma nova energia que é o vapor. Mantém-se assim uma certa linha de continuidade.

U@O - Mas há outras estruturas anteriores que foram também encontradas, relativas a um espaço mais antigo?
E.P. -
Sim, temos algumas estruturas que não conseguimos ainda identificar porque estão muito fragmentadas. São dois espaços menores que foram reaproveitados sucessivamente. Foi uma intervenção arqueológica de emergência, acompanhada pelo Professor Michael Mathias, arqueólogo da Universidade, mas está tudo integrado no novo espaço. Aliás, estas descobertas implicaram a alteração completa do projecto, já que para esse local estavam previstas instalações sanitárias e a cafetaria.

U@O - Além dessas estruturas que acabam por constituir um museu de sítio, como é constituído o restante espólio?
E.P. -
Neste momento temos 600 peças inventariadas, destinadas a este novo núcleo.
Essa parte abarca máquinas e equipamentos, ligados às diversas operações têxteis, no âmbito da produção dos tecidos.
O espólio que temos a nível documental é muito volumoso, e será incorporado no Centro de Documentação/Arquivo Histórico, que está em ligação com o núcleo museológico.

U@O - Qual é o objecto mais antigo do espólio?
E.P. -
O documento mais antigo é do século XVII, referente à transformação de panos, mas é um documento único. Dispomos dos documentos da Campos Melo e da Fábrica Alçada, de meados do século XIX. É preciso realçar que a nossa documentação não é exclusiva à Covilhã, porque o objectivo é conservar tudo o que diga respeito ao património têxtil ligado aos lanifícios.
Relativamente às máquinas é um pouco mais difícil, porque estamos agora a tratar da fase da industrialização e as máquinas são de série, mas temos seguramente máquinas dos finais do século XIX, e várias dos anos 30 e 40. A partir daí há de todas as décadas. Procuramos encontrar máquinas representativas da evolução tecnológica.



Museu único

Elisa Pinheiro está à frente do seu desde a sua fundação

U@O - Qual é, na sua opinião, a importância do Museu de Lanifícios da UBI a nível regional e nacional?
E.P. -
O Museu de Lanifícios propôs constituir-se como um Museu único a nível do País porque parte de estruturas que não existem em mais lado nenhum e, a partir daí, procura contar a história da evolução dos lanifícios, mas também porque a Covilhã teve uma importância extrema nessa evolução para a própria cidade e também para a região.
Há um fio condutor da nossa intervenção. Nesse sentido penso que ele é singular, não há outro igual, portanto vem ocupar um lugar que era necessário. É essa singularidade que dá um pouco a ideia da sua importância a nível nacional. No que diz respeito à Covilhã, penso que o Museu de Lanifícios é hoje um equipamento cultural que tem uma série de virtuosidades, para além de preservar a memória dos covilhanenses e de fazer com que eles se revejam a si e ao seu passado, de uma forma menos dramática do que provavelmente, as recordações que a memória lhes traz.
Mas um museu aparece quando a actividade desaparece, portanto não podemos esquecer a ideia de que é uma realidade um pouco virtual. Ele serve para recriar a memória, naturalmente alterando algumas coisas, mas procura fazê-lo com autenticidade. Para além disso, este museu também tem outra vertente muito importante. Está a tentar conservar o património de acordo com princípios de conservação activa.
A nossa missão fundamental é conservar o espólio, investigá-lo e divulgá-lo, mas potenciar também que ele sirva para um desenvolvimento sustentado da região. É um equipamento que também está ao serviço do turismo cultural.

U@O - Que outros projectos estão em curso?
E.P. -
Neste momento estamos a desenvolver o projecto Translana, que nos vai permitir dar continuidade à musealização da Real Fábrica Veiga, e ao mesmo tempo, definir uma rota peninsular da lã. Estamos a fazer o levantamento das unidades fabris e de todos os sítios ligados aos lanifícios em toda a região e às vias da transumância, numa área que vai de Castelo Branco até à Guarda.

U@O - Qual o número de visitas ao Museu?
E.P. -
As visitas ao Museu têm vindo sempre a aumentar de ano para ano, e situam-se numa média de 10 mil por ano.
Temos fundamentalmente visitas de escolas, mas também de particulares. Tem vindo a crescer muito a frequência das visitas ao domingo. Os prémios e os projectos em que estamos envolvidos, acabam por dar a conhecer o Museu.

U@O - Que reacção têm os covilhanenses, uma vez que é um pouco da sua história que está patente no Museu?
E.P. -
É interessante verificar que temos muito mais visitante de fora do que da Covilhã. As pessoas pensam, à partida, que já ficaram fartas de fábricas, que já conhecem. Houve uma dificuldade inicial em ultrapassar as portas de entrada. Mas de facto, o que lá está não é aquilo de que estavam à espera.
Penso que se sentem bem, a avaliar pelas reacções. As doações que temos são representativas de que a visita acaba por ser gratificante. Reconhecem e reconhecem-se lá.

U@O - Como é que gostaria de ver o Museu num futuro próximo?
E.P. -
Gostava que partisse da interactividade com o público. O museu pertence a uma Universidade e pensamos que deve veicular um conjunto de informação e de conhecimentos na senda científica e deve fazê-lo de forma a cativar o público. Nesse sentido, gostaria de ver este novo núcleo, que é o da industrialização, com uma dinâmica diferente daquela que temos na Real Fábrica dos Panos, onde há aquilo que chamamos de espírito do lugar, e isso tem de ser preservado e respeitado.
Mas este novo, uma vez que nos vai falar da industrialização, terá que veicular um pouco aquela imagem do mundo fabril. E simular alguma actividade, também para que haja ali um espaço onde se possa matar saudades do tear.





Perfil


Nasce no Tortosendo, e lá faz a escola primária e também o primeiro e segundo ano do liceu. “Na altura era considerado um ensino praticamente doméstico, porque não havia ainda colégios no Tortosendo e os meus pais achavam-me ainda bastante franzina para vir estudar para a Covilhã”, lembra. Vem para esta cidade frequentar o liceu do terceiro ao sétimo ano.
Depois segue para Lisboa, onde se licencia em História na Faculdade de Letras, local onde faz também as ciências pedagógicas. “Comecei a trabalhar antes de ter concluído a licenciatura, em 72. Dava aulas no colégio Portugal na Parede, e estive também na escola Paula Vicente e no liceu Francisco Arruda”, conta.
Entretanto casa e regressa à Covilhã, onde começa a leccionar no liceu Frei Heitor Pinto. “Até hoje pertenço ao quadro do liceu. Nos últimos 10 anos fui orientadora de estágios de professores de história”, refere.
A sua vinda para a UBI acontece quase por acaso. Quando foram descobertas as estruturas que hoje pertencem ao Museu de Lanifícios, o então reitor, Passos Morgado, chama a Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial para acompanhar o processo. Na altura, Elisa Pinheiro é a representante desta associação nacional na região Centro. Por isso acompanha toda a intervenção que foi feita a nível da conservação e recuperação daquelas estruturas. Começa por trabalhar na recuperação e musealização, mantendo-se até hoje à frente do Museu de Lanifícios.
Entretanto, foi desde o início docente na área de história na instituição, estando actualmente ligada ao Departamento de Letras.
Presentemente encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento no âmbito da história económica ligada à industrialização.
“O meu trabalho tem a ver com a fundamentação histórica da localização da indústria de lanifícios na Covilhã e o período de estudo é entre 1837 e 1937.
Vou acompanhar a criação do tecido empresarial ao longo do século XIX, até 1937, o início do século XX quando volta a haver uma forte intervenção do Estado com as leis do condicionamento industrial”, explica.
Nos seus raros tempos livres, Elisa Pinheiro aprecia longos passeios pelas ruas da Covilhã.