Por Eduardo Alves



Praça da Liberdade, a 25 de Abril de 1974

São 10 horas da manhã e o tear instalado no fundo do enorme salão da firma Pereira Ramos é travado abruptamente. A canela não partiu nem a trama de tecido está mal colocada, a paragem do matraquear do pente deve-se a um agente da Guarda Nacional Republicana.
"Acompanhe-me, está preso", foram as secas palavras que Apolinário Proença ouviu, faltavam três dias para o Natal. Corre o ano 1963 e para o velho posto da GNR do Tortosendo, no bairro dos Pinhos Mansos, segue a passos largos um homem que há muito espera este desfecho. Aos 34 anos, Apolinário Proença troca o seu nome por "António", pseudónimo inscrito na ficha de militante do Partido Comunista Português. Vai para dois meses que quatro camaradas "de entre mais de duzentos só no Tortosendo", foram detidos. Numa última tentativa, dias antes, o irmão do pseudónimo "António" ainda lhe pôs 12 mil escudos nas mãos para rumar a terras de França.
Homem de ideias firmes e convicções inabaláveis. Pela liberdade "lutei e fiz de tudo", não era assim "que ia voltar as costas ". Decidiu ficar, um arrojo que lhe vai custar três anos de prisão, "de martírio e tortura". Chegou a sentir forte arrependimento de não ter partido enquanto pôde, "mas as coisas são como são e não se pode voltar a trás quando bem entendemos". São já seis da tarde, daquele 22 de Dezembro de 1963. Apolinário, que a partir daqui será tratado por "António", segue para Lisboa com mais um camarada. As casas do Tortosendo, a fábrica e o passar de mãos pelos teares só voltarão a acontecer passados três anos.
Chegam à sede da PIDE/DGS pelas três da manhã. A viagem até à António Maria Cardoso foi tão tumultuosa quando o processo de identificação. Várias horas de interrogatórios e a célebre tortura da "estátua". Coisas que "levavam um homem à loucura". "António" recorda bem as "horas infinitas que passou a olhar para a parede de reboco caído com os braços erguidos e sem fazer mais nada". Lembra também o desalento sentido quando "por entre as frestas da parede que dividia as salas de interrogatório" ouviu um camarada "desembuchar tudo". A lista com nomes e respectivos pseudónimos foi então terminada.
Pertencente ao Comité Central do PCP, partido ainda na clandestinidade, Apolinário Proença acaba os 54 primeiros dias de cadeia, passados no Aljube, com um interrogatório de dois dias. A PIDE "mostrou-me toda a lista de simpatizantes, funcionários e gente ligada ao partido". A sua extensão era tal "que me chegaram a explicar que só não vieram prender aquela gente toda ao Tortosendo porque as fábricas paravam". E era nas fábricas onde o regime fascista ia ganhado buracos, onde "a cadeira do poder onde estava sentado Salazar ia ganhado bicho". O julgamento de Apolinário e de outros cinco conterrâneos deu-se no Porto. José César Paulouro das Neves, então advogado estagiário conseguiu-lhes uma pena mínima de três anos. Ao trânsito em julgado da sentença, tecelões e pedreiros seguiram para o Forte de Peniche.
No bairro de Santa Catarina, a pequena casa de porta vermelha tem na sua entrada um par de vasos. Cravos vermelhos assinalam a moradia de "António". Uma casa talvez abençoada pela toponímia bairrista, até porque "sempre a tive repleta de jornais Avante". O operariado "era catequizado e instruído por esta publicação e por outro tipo de livros". Tudo servia para "combater o regime".


A visão de Apolinário Proença sobre o país do pós 25 de Abril é positiva



As voltas da vida

Palavras que também servem a António Pinto Simões da Cunha. Este homem que agora percorre as ruelas da zona histórica da Covilhã, a caminho de casa, também combateu o regime. O emaranhado de ruelas é "como as passagens da minha vida". A comparação literária ganha relevo estilístico no écran, mas quando contada, recordada na primeira pessoa "vê-se que não é assim tão fácil".
O guarda-livros da Casa Sousa, uma loja de ferragens e materiais de construção é um dos elementos mais perseguidos pela PIDE/DGS na zona da Covilhã. Trinta anos volvidos sobre o 25 de Abril de 1974, Simões da Cunha foi descobrir na Torre do Tombo "coisas da minha vida que já não recodava". O seu processo, que agora folheia com cuidado maternal e de lágrima no olho "tem mais de 500 folhas". De tudo um pouco se pode descobrir. Desde a matrícula e cor do velhinho Fiat 127, até às deslocações fora da cidade que Simões da Cunha, por motivos pessoais ou profissionais fazia. A tudo isto, juntam-se também os vários processos de detenção e julgamento.
"Fui fazer as minhas 25 primaveras a um dos grandes hotéis salazaristas", começa por dizer. O jovem António, filho de militar destacado no quartel da Covilhã, "a quem nunca faltou nada, dentro das possibilidades e do regime", desponta cedo para as lutas políticas, para a oposição ao fascismo. Sua mente "não gostava de ver passar necessidades e injustiças a ninguém". Ideais partilhados pela maioria da juventude da sua época. No entanto, Simões da Cunha, decide partir para a acção. Com capacidade e espírito empreendedor, "a luta travada na clandestinidade" ganhava alento. António Cunha abre um sorriso por entre a melancolia e a tristeza das recordações para dizer que lhe agradava "agitar as águas". Um dos mais perseguidos de toda a Beira Baixa, Simões da Cunha foi também dos que deu "mais bofetadas em todo o regime pidesco".
Golpes que lhe custaram um ano de cadeia. A 21 de Junho de 1959, quando um actual agente da Polícia de Segurança Pública da Covilhã sobre a escada da Casa Sousa em direcção ao escritório do guarda-livros, Simões da Cunha conhecia o motivo. O caminho entre a Rua Direita e a esquadra da PSP, "foi como sempre, percorrido com algum tormento interior". Ainda esse dia vai dormir à sede de Coimbra, da polícia política. Voltaria à Covilhã um ano depois, mas também "um homem diferente".


Prisão: escola de ideias

António Simões da Cunha, ex-preso político, sublinha a importância da Revolução dos Cravos

Percorre-se agora a estrada de Peniche. No velho forte, encarcerados grande parte dos cabecilhas da oposição. Num tempo, "em que é bom frisar o facto de não existirem partidos políticos", as pessoas "uniam-se mais em torno de uma causa", fala José António Pinho. O companheiro de prisão de Simões da Cunha sublinha mesmo "o grande movimento de unidade que hoje não existe".
Impelidos pela visita de Humberto Delgado, o General sem medo, e por toda uma série de lutas como os jantares do 5 de Outubro, "o grande grupo de jovens católicos progressistas combatia, diariamente, o regime". Hoje empresário, José Pinho é, como os outros dois presos políticos, incriminado por "distribuir propaganda política" e outros documentos contra o regime. A funcionar "A Bem da Nação", a PIDE/DGS aponta o jornal Avante, livros sobre a fome e a repressão e inclusivamente, "a célebre carta de D. António, bispo do Porto", como escritos contra o Estado Novo.
Logo após a passagem pelas sedes da DGS, os detidos tinham como destino, os fortes de Peniche e Caxias. Prisões, "onde os presos de delito comum eram melhor tratados que os presos políticos", explica Simões da Cunha. Agora aposentado e ao redor dos livros, um dos seus passatempos preferidos, lembra que "as escolas daquela altura eram as prisões". No meio de toda uma situação "infra-humana", exista sempre "alguma coisa boa". Os grandes alentos que Simões da Cunha trouxe da cadeia foram os "maiores conhecimentos filantrópicos e o avolumar da luta pela liberdade".
Preocupações que estiveram na linha da frente desde 1960 a 1972. Doze anos em que Simões da Cunha encabeçou o movimento de angariação de fundos para os pobres. Um movimento em torno do jornal República. Lembra que "até as listas de dadores eram vistas e revistas pelos agentes da PIDE". A luta titânica contra o salazarismo ainda o ia levar ao Hospital da Covilhã, depois de brutalmente espancado pelos agentes da polícia política. Passagens que fazem parte da memória de Simões da Cunha "e que nunca mais esquecem".
José Pinho conta com maior número de detenções. Com 64 anos de idade confessa que "naquela altura o nosso pensar era diferente". Este homem que chegou a ser candidato pelo Movimento Democrático Português (MDP), no ano de 1973, sublinha que "quando se tem 19 anos, pensa-se de forma diferente".
Pouco depois de ser libertado da sua primeira "estadia nos liceus da PIDE", é novamente detido. Dos tempos de prisão lembra o forte humanismo vivido dentro das celas e também a vontade interior de continuar a lutar. Ingressa no Exército e é aos comandos de uma companhia situada em Penamacor que vai assistir à "insurreição pacífica" de 200 homens. Decorria o ano de 1967 e José Pinho carregava há sete escassos meses a aliança que o uniu à sua esposa. "Nunca esperei que aqui fosse acontecer", adianta. Numa manhã como tantas outras, a companhia liderada por Pinho, "onde estava um grande número de jovens revolucionários" apresenta-se em formatura na parada do quartel. À ordem do oficial de dia, para destroçar, nenhum homem se mexe. Os ânimos exaltam-se e só à voz do cabo Pinho o pelotão voltou ao seu trabalho. O episódio correu os quartéis de Norte a Sul do País e José Pinho é enviado para a prisão militar de Évora.
A vida, cá fora, depois da saída "era sempre de pressão e constante terror", lembra Apolinário Proença. Aos 75 anos de idade, puxa frequentemente do cigarro para, entre as baforadas de fumo, recordar as noites passadas em claro. "Não era fácil viver nestas condições, sempre com o coração apertado por alguma coisa", avança. Os patrões, "ainda iam ajudando", afirma Simões da Cunha. Quando regressou da prisão, dos interrogatórios, de todas as torturas físicas e psicológicas, o seu lugar "lá estava à espera". Também porque "todos alimentávamos a esperança de que isto um dia ia mudar".


José Pinho assistiu à revolta de 200 militares em Penamacor



"O sol brilhou diferente esse dia"

No meio de tanta pancada, de tamanho espezinhar da alma falta falar no mais difícil. Não que nestas situações ou em semelhantes seja vergonha, "mas para um homem chorar é preciso muito". As palavras vêm da boca de "António", o pseudónimo de Apolinário Proença.
A meio de uma semana de Abril, de um ano como os outros, a rádio do autocarro que levava Apolinário ao trabalho estava, "surpreendentemente" calada. Todo um silêncio que intrigou o operário. "Quando entrei na fábrica, eram umas seis e pouco da manhã, a primeira coisa que fiz foi contar a um companheiro meu o que acabava de suceder". Passado algum tempo começam a juntar-se outros operários, "mas havia algo no meu coração a dizer-me que se passava qualquer coisa no País". Decorria desde a meia-noite um golpe militar. As máquinas já não trabalharam, "os operários da Sociedade de Fabricantes, a maior naquela altura, começaram a correr todas as outras fábricas e fomos todos para o centro da vila". A inundação de alegria ainda hoje faz estragos no peito de Apolinário. Deixa o cigarro e meio e puxa do lenço branco de pano para enxugar as lágrimas. Aquela voz que ainda há segundos cantava trechos de "Grândola. Vila Morena" e "Os Vampiros", enrola-se agora para só conseguir dizer que "o sol brilhou diferente esse dia".
Essa mesma diferença, em jeito milagroso, percorreu Portugal. Na Covilhã, o Pelourinho "estava a abarrotar de gente". A tomada da Câmara Municipal, "o poder gritar liberdade", e a simples conversa entre a multidão, deram a Simões da Cunha "uma alegria só igualável ao nascimento de um filho". Todos estes homens que contribuíram para a liberdade, "sentiram nesse dia algo indescritível". Ainda hoje, ao rever na televisão e nos jornais as imagens da libertação dos presos políticos António Simões da Cunha chora "a bom chorar". A emoção dos dias vividos numa revolução que conduziu Portugal, trinta anos depois, "a um País muito melhor".


O futuro construído todos os dias

Para estes homens, a revolução faz parte da sua natureza

Falar de Abril é "falar de tudo o que é Portugal". Se bem que José Pinho gostasse que as escolas, os hospitais, as estradas, "aparecessem mais na televisão". Num Estado "onde não se investe na cultura dos homens, onde a participação cívica se resume ao mínimo", o espírito de Abril "tende a perder-se, ou melhor, a perverter-se", diagnostica Apolinário Proença. O "futuro a Deus pertence, mas julgo que será muito melhor do que aquele que o Estado Novo nos reservava", conclui José Pinho.
Ser revolucionário "é também verificar que os jornais, as televisões, a economia, a política, e sobretudo a mentalidade social estão cada vez piores". Este homem que acredita sempre na democracia e na liberdade de expressão, que usava o pseudónimo de "António", lembra que "temos de lutar sempre para melhorar o que é nosso, numa força mútua conseguida através da cultura".
A alegria excêntrica de Simões da Cunha volta todos os anos por esta altura. Abril deve ser "mais recordado". Um dos principais problemas para este preso político e revolucionário reside no facto de "muitas vezes não se transmitir a verdadeira importância desta data".