José Geraldes

Sabedoria de viver


Com a secularização da sociedade, o tempo da Quaresma deixou de ter a expressão social que se lhe atribuía. Agora, mesmo muitos cristãos passam ao seu lado, lembrando-se vagamente que há dias de jejum e abstinência. Isto no que diz respeito aos mais velhos. Os jovens e ocasionais praticantes de missa dominical nem sabem o que significa a Quaresma nem o valor que tem na preparação da Páscoa.
Estamos perante uma ignorância religiosa a expandir-se e uma indiferença em crescimento e a raiar muitas vezes a intolerância.
Mas, por mais que se silencie, a Quaresma marca um tempo de pensar na vida e no seu valor. Um texto do escritor Gabriel Garcia Marquez pode ajudar a esta reflexão.
Partilhá-lo com os leitores é um dever. Eis a mensagem do escritor latino-americano comunicada em forma de carta.
“Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos 60 segundos. Andaria quando os outros param, acordariam quando os outros dormem. Ouviria quando os outros falam, e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate.
Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto, não apenas o meu corpo mas também a minha alma. Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperava que nascesse o sol. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas de um poema de Benedetti e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à lua. Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas.
Meu Deus, se eu tivesse um pouco de vida..., não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas. Convenceria cada mulher ou homem que é meu favorito e viveria apaixonado pelo amor. Aos homens provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar.
A uma criança dar-lhe-ia asas mas teria que aprender a voar sozinha. Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice mas sim com o esquecimento.
Tantas coisas aprendi com vocês, os homens...Aprendi que todo o mundo que viver em cima da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta. Aprendi que um homem só tem direito a olhar de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se.
São tantas as coisas que pude aprender com vocês mas não me hão-de servir realmente de muito porque, quando me guardarem dentro dessa maleta infelizmente estarei a morrer...”
Perante estas palavras, ninguém pode ficar indiferente. Uma inquietação nos invade a convidar para uma mudança. Mudança que nos coloca interrogações sobre a vida, a morte e a importância de cada ser humano. E nos dá o sentido do bem que se faz e nos leva a não desperdiçar a sabedoria de viver.
Em tempos de ruídos de toda a ordem, a mensagem de Gabriel Garcia Marquez provoca-nos o encontro connosco próprios e introduz-nos no silêncio necessário para saber quem somos e para onde vamos.