António Fidalgo

Questões candentes


Os actuais distúrbios em França preocupam, e amedrontam mesmo, uma Europa que nas últimas quatro décadas recebeu imigrantes de outros continentes e de outras culturas e que, agora agrupados em subúrbios das grandes cidades, constituem comunidades desenraizadas e desintegradas da sociedade circundante. A exclusão social, a pobreza, a diversidade cultural e religiosa dessas comunidades imigrantes originam um estado de violência latente pronta a rebentar a qualquer momento.

O problema não é apenas étnico, em que os filhos dos imigrantes do Magrebe se vêem discriminados sobretudo pela tez escura da pele. O problema é também económico e social, cultural e religioso. Numa sociedade de mercado, competitiva, em que o sucesso se confunde com o consumo, os jovens que se revoltam são os que, sem emprego e sem poder de compra, não podem adquirir o que a publicidade lhes inculca a toda a hora como imprescindível ao bem estar e à felicidade. Socialmente os imigrantes de segunda geração enfrentam uma estrutura social muito mais rígida que a americana. Na Europa a mobilidade e a ascensão profissionais e sociais são extremamente difíceis. Arredados da corrente, marginalizados em bairros periféricos sem história e sem alma, os jovens têm de facto um passaporte de um país europeu, mas não se sentem cidadãos desse país. Dito de outra forma, são cidadãos de direito, mas não cidadãos de facto, de cultura, de identidade, de sentimento de pertença, de vestir a camisola.

A religião é porventura a causa mais profunda dessa clivagem social e cultural. As comunidades em que o afastamento é maior são as comunidades islâmicas, que, pressionadas in loco económica e socialmente, sentem afinidades culturais e religiosas com povos e nações longínquas, que consideram preteridas na política e na economia mundiais, e de que o exemplo mais paradigmático é o do povo palestiniano. Provenientes de culturas do Oriente, sentem-se também eles vítimas do Ocidente nos países do Ocidente.

As ideologias internacionalistas, que marcaram o século XX, julgaram que seria possível construir um mundo unido, independentemente de credos religiosos e de histórias e de culturas nacionais. Vemos que não é assim. O que se passou há dez anos atrás nos Balcãs e o que se passa hoje no Cáucaso mostram bem que os nacionalismos continuam vivos. Mesmo o que ocorre em Espanha com as tendências centrífugas da Catalunha e do País Basco é um sintoma de que a globalização não esbate a necessidade de afirmar uma especificidade própria, de reclamar a respectiva autonomia e de lutar até à morte por isso.

Portugal tem a felicidade de ter um Brasil imenso do outro lado do mar, de muitos dos seus imigrantes provirem de lá, falando a mesma língua, partilhando a mesma cultura, comungando a mesma religião, de se integrarem bem na terra dos seus antepassados. A homogeneidade cultural e política de Portugal, a ausência de nacionalismos, é um bem a preservar e a promover. Os brasileiros podem ajudar a enriquecer essa cultura com a sua diversidade, mas que não a põe em causa no seu âmago.

A integração das comunidades de imigrantes é, indubitavelmente, uma das tarefas prioritárias da Europa actual. Para isso têm de concorrer ambas as partes, as sociedades europeias, ajudando economicamente e acolhendo com tolerância a diversidade que não põe em causa justamente essa tolerância. As comunidades imigrantes têm de se enquadrar nas sociedades e nas culturas envolventes, não colocando em causa valores fundamentais estabelecidos ao longo de séculos, como a liberdade e a tolerância religiosa e cultural, a igualdade das mulheres perante a lei, o direito de cada indivíduo à auto-determinação. Será um processo longo e difícil, mas imperioso de parte a parte.