Por Catarina Rodrigues e Eduardo Alves



"O trabalho que desenvolvemos é suficiente para justificar a boa classificação"

Urbi et Orbi – O IFP, que teve início em 2002, tem-se revelado importante no desenvolvimento da investigação na área da Filosofia. Que balanço faz destes primeiros anos de existência?
José Manuel Santos – Um balanço globalmente positivo. Houve uma fase de lançamento em 2002 e depois tivemos um financiamento para o biénio de 2004 e 2005, atribuído com base numa avaliação feita por um painel de peritos em 2003, na qual obtivemos a classificação de “Very Good” , o que significa que os avaliadores depositaram uma grande confiança no potencial científico da equipa que formava a unidade.
Durante estes primeiros anos de actividade tentámos fazer um trabalho que correspondesse à confiança que foi depositada em nós. Penso que o trabalho que desenvolvemos é suficiente para justificar a boa classificação que tivemos. É óbvio que o nosso objectivo é continuar a manter este nível elevado.

U@O – Quais os projectos que estão a ser desenvolvidos pelo IFP?
J.M.S. – Terminámos há pouco um projecto que investigou as bases filosóficas da comunicação. Agora, os projectos são sobretudo nas áreas da Teoria Política, da Ética e da Fenomenologia. Na Política trata-se de investigar os conceitos fundamentais que estão na base da natureza do político, ou seja os conceitos que chegaram até nós vindos das três grandes tradições, dos três momentos fortes da filosofia ocidental: os gregos, o cristianismo e o iluminismo moderno. O objectivo é tentar explicar a origem de conceitos como democracia, Estado de direito ou direitos do homem, por exemplo, e perceber de que elementos da cultura filosófica ocidental é que eles provêm. Este trabalho é indispensável para podemos pensar, hoje, correctamente, estes conceitos que vêm do passado, e, sobretudo, para poder utilizá-los de maneira frutuosa e original no presente, face aos desafios que o mundo moderno coloca à política.
No campo da Fenomenologia, corrente filosófica muito importante no século XX, estamos, em colaboração com o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, que é uma unidade desta área muito bem classificada, a elaborar um Glossário de conceitos fundamentais, assim como algumas traduções de textos clássicos de Fenomenologia, sobretudo alemães e franceses. No IFP estamos a traduzir um livro de Ética Fenomenológica do filósofo alemão Edmund Husserl. Este projecto conta com financiamento próprio da FCT.

U@O – Quantos investigadores estão envolvidos nos projectos do IFP?
J.M.S. – O Instituto conta, neste momento, com dez investigadores com o estatuto de membros efectivos, seis dos quais doutorados. O projecto de Fenomenologia é algo mais vasto e nós somos apenas uma parte do total da iniciativa. Trabalham nesse projecto investigadores das Universidades de Coimbra, de Lisboa (Clássica) e da Universidade Católica.




"Um objectivo importante passa pela internacionalização"

U@O – Quais os próximos passos a serem dados?
J.M.S. – Temos quatro investigadores que ainda não estão doutorados. Daí que um dos passos importantes vá no sentido de estes terminarem as suas teses de doutoramento, que estão a ser feitas nas área de investigação do Instituto. Um tal passo é tão importante para eles como para o IFP.
Nesta fase inicial falta-nos ainda aprofundar temas. Daí que um objectivo futuro passe por aprofundar temáticas e desenvolver problemáticas onde se possa apresentar trabalhos com alguma originalidade.
Um terceiro objectivo importante passa pela internacionalização. Por agora temos parceiros portugueses, nomeadamente em Coimbra e em Lisboa. Com o crescente número de contactos com colegas espanhóis, brasileiros, franceses e alemães, vamos tentar estabelecer parcerias com equipas estrangeiras que se estejam a debruçar sobre os mesmos temas que nós.

U@O – A criação de uma biblioteca especializada nas áreas de investigação do IFP é um dos objectivos. Em que ponto está essa ideia?
J.M.S. – Esse é, de facto, um passo indispensável para todas as unidades de investigação desta área. Todas têm bibliotecas especializadas, a funcionar em espaços próprios. Veja-se, por exemplo, o caso da unidade de investigação em Filosofia da Linguagem, da Universidade Nova de Lisboa, que tem, nas suas instalações, uma biblioteca inteiramente dedicada à temática da linguagem. Nós, como estamos a investigar nas áreas da Ética, da Política e da Fenomenologia, obviamente que estamos a constituir fundos bibliográficos nestas áreas. Grande parte das somas que nos foram atribuídos pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) foram para a aquisição de livros nestas áreas. Alguns, infelizmente, bastante caros. Neste momento já estamos a constituir uma base, mas ainda falta muito para termos uma biblioteca especializada que seja suficiente para as nossas necessidades. Porque, como é evidente, os colegas das universidades de Lisboa ou de Coimbra já tinham, nas respectivas bibliotecas, que são muito antigas (a de Coimbra tem séculos!), fundos muito bons na área da filosofia. Esta é, pois, uma lacuna que temos de tentar preencher.

U@O – Em termos desta unidade de investigação, existem colaborações com as comunidades científicas congéneres?
J.M.S. – Com o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa já vamos na segunda parceria em projectos da FCT com financiamento próprio. Em colaboração com eles já realizámos o projecto Filosofia e Comunicação e agora estamos a trabalhar no projecto do Glossário da Fenomenologia, que inclui traduções. Estas parcerias também implicam a organização de eventos comuns, como jornadas e conferências.



"Somos a única unidade espacializada em Ética e Filosofia Política"

"A ideia de universidade esteve sempre associada à ideia de fazer investigação"

U@O – Existem no País outras unidades de investigação semelhantes ao IFP?
J.M.S. – Existem unidades generalistas. Muitas das unidades são generalistas porque foram criadas em universidades que têm um corpo docente muito numeroso na área da Filosofia, e que, portanto, contam com especialistas de todas as disciplinas e correntes filosóficas. Dito isto, há algumas unidades especializadas, como, por exemplo, o já referido Instituto de Filosofia da Linguagem, na Universidade Nova de Lisboa. Em Política existe uma unidade na Universidade Católica, mas unidades especializadas em Ética e Filosofia Política somos provavelmente os únicos.

U@O – Num artigo de opinião publicado no Urbi, fala de dois aspectos positivos de Bolonha que são a aposta nos três ciclos de estudos e na investigação. Estas serão assim as grandes vantagens da mudança?
J.M.S. – Todo este processo pode contribuir para clarificar algumas coisas que nas universidades portuguesas, e na legislação existente, não são muito claras. A ideia de universidade esteve sempre associada à ideia de fazer investigação. Acontece que as universidades portuguesas estiveram, até agora, muito centradas na licenciatura. Ora, na licenciatura, a ideia de formação é mais importante do que a de investigação. Não por acaso, em Portugal, até agora, é bastante difícil criar uma licenciatura, devido à necessária autorização do ministério de tutela, e à questão do financiamento, e muito fácil criar um doutoramento, ao contrário do que acontece noutros países.
A legislação de Bolonha vem inverter esta relação. Passam a existir três ciclos sendo que dois deles, o mestrado e o doutoramento, são por assim dizer mais especificamente universitários. O doutoramento é mesmo reservado às universidades. A nova legislação acentua muito a ideia de investigação no mestrado e no doutoramento. Por conseguinte, a partir de agora as universidades têm de estar conscientes que, para o serem, têm de ter os três ciclos e têm que dar uma grande atenção ao mestrado e ao doutoramento. O que isto significa é que terão de dar uma enorme atenção à investigação, visto que o mestrado e o doutoramento estão intimamente ligados à investigação. Uma universidade que, numa dada área, não tenha um potencial de investigação muito importante, poderá não ser autorizada a leccionar estes dois ciclos, sobretudo o terceiro, o doutoramento. E, num tal caso, de universidade só terá o nome.
Até agora, para criar um doutoramento bastava, na prática, uma deliberação do Senado, e ninguém ia ver se havia ou não investigação nessa área. Com Bolonha vai haver uma “Agência de Acreditação” (nacional e mais tarde europeia) que irá verificar se uma dada universidade tem potencial de investigação numa dada área para poder criar um mestrado ou um doutoramento nessa área. Na prática, isto significa verificar se há uma unidade de investigação a funcionar, se essa unidade tem bons investigadores, se foi bem classificada pela FCT, etc.



"Vamos assegurar as disciplinas consideradas canónicas"

U@O - Alertou também para dois perigos contidos em algumas disposições dos textos de Bolonha: “um certo pedagogismo e uma inquietante tendência para a burocracia” .
J.M.S. – Estamos habituados a que tudo o que nos chega da “Europa”, ou de “Bruxelas”, contenha uma certa carga burocrática, e Bolonha não é excepção à regra.
Na sociedade moderna, este tipo de processos complexos são elaborados por burocratas, sem dar a esta palavra um sentido pejorativo, ou seja por pessoas que gostam de submeter todas as actividades humanas a um complexo formalismo jurídico, além de adorarem quantificar tudo, visto que a quantificação dá uma aparência (obviamente falsa) de cientificidade e objectividade. Isto traduz-se numa série de disposições normativas que entram demasiado nos pormenores das acções, asfixiando a espontaneidade e a liberdade dos agentes. Isto, para quem está do lado de cá, ou seja para quem é professor, estudante ou investigador, traduz-se numa enorme carga de trabalho a preencher formulários, a fazer relatórios e a contabilizar horas e minutos de estudo, de “contacto”, de “tutoria”, etc., sendo que estas contabilidades de horas podem não ter, e não têm, nenhum significado para o essencial, ou seja para a questão de saber se os jovens adquiriram, ou não, na sua passagem pela universidade, conhecimentos e competências.
Defendo, pois, uma margem de liberdade, ao nível dos departamentos, ou seja dos cursos, para que os docentes (apoiados em opiniões dos estudantes, em discussões com eles), em cada área, desenhem todo o processo pedagógico, incluindo tipos de avaliação, ritmos de aprendizagem e avaliação, calendários escolares e de exames, etc. evitando os exageros burocráticos. As normas de avaliação e o calendário de aulas e exames não devem ser pensados de maneira centralista e abstracta, como aconteceu até agora na UBI. Avaliar um estudante de Filosofia ou de Literatura não é a mesma coisa que avaliar um estudante de Engenharia. Penso que, se for bem interpretado, o processo de Bolonha implica este tipo de liberdade. E as tendências burocráticas de que falei podem ser neutralizadas se os responsáveis das instituições forem sábios.

U@O – O que vai mudar no curso de Filosofia com o Processo de Bolonha?
J.M.S. – Vamos assegurar as disciplinas que são consideradas canónicas, que fazem parte de uma boa formação de base, ou seja, as disciplinas como a História da Filosofia, a Ética, a Filosofia Política, a Ontologia, entre outras. Há depois margem para algumas cadeiras de opção livre, mesmo fora da Filosofia. E poderá talvez mesmo haver margem para uma minor noutra área.

U@O – Como se vai estruturar o curso e as pós-graduações desta área?
J.M.S. – Tal como diz a nova “lei dos graus”, o objectivo das pós-graduações é o de um aprofundamento e de uma especialização . Na medida em que, em Filosofia, a equipa docente que existe na universidade é reduzida e em que há alguma especialização na área da Filosofia Prática, é natural que as especializações que vamos propor apontem para as áreas da Filosofia Moral e Política. Todavia, disciplinas como a Antropologia Filosófica ou a Metafísica também poderão ser incluídas, visto que abordam “fundamentos” da Ética e da Política.



"Tem havido uma relação frutuosa com outros cursos"

"Um dos aspectos positivos de Bolonha está na sua estrutura"

U@O – Sendo a Filosofia uma área multidisciplinar como é a relação desta com as restantes licenciaturas da UBI?
J.M.S. – Tem havido uma relação frutuosa com outros cursos. No de Arquitectura, por exemplo, existem duas cadeiras de índole filosófica, que são a Filosofia do Habitat e a Estética da Arquitectura. Na vertente da Ética há uma relação estreita com os cursos de Engenharia Informática, de Marketing e de Psicologia, onde há cadeiras de Ética adequadas a essas especialidades.
A minha ideia, que tento explicar aos colegas de outras áreas científicas, é a de que, tal como acontece em universidades estrangeiras, há certas disciplinas filosóficas que deviam ser obrigatórias em todos os cursos da UBI, nomeadamente a Ética. Nas universidades dos países do Norte da Europa e em muitas dos Estados Unidos, a Ética e a Epistemologia são obrigatórias para todos os cursos, de todas as faculdades. Na Ética, são dadas ao estudante as bases do pensamento ético ocidental, o qual, em seguida, é aplicado às respectivas áreas científicas e profissionais, nas chamadas deontologias. Um engenheiro civil também tem de ter em conta, no exercício da sua profissão, normas éticas, tal como um jornalista, um director de marketing, um gestor, etc. Mas antes de aprender as regras deontológicas, que já são uma aplicação a uma dada actividade, o estudante deve ser familiarizado com as principais ideias do pensamento ético ocidental, com as ideias dos grandes filósofos da ética. Esta formação, dada na disciplina de ética, constitui o núcleo de uma formação humanística . Defendo, por isso, uma cadeira de Ética em todos os cursos da universidade. Além disso, nos de índole artística, como os de Arquitectura, Design ou Cinema, também são indispensáveis disciplinas de Estética.

U@O – Como pensa atrair mais alunos para esta área? Bolonha dará uma ajuda nesse sentido?
J.M.S. – Um dos aspectos positivos de Bolonha está na estrutura 3+ 2, a qual dá uma maior flexibilidade na formação de um jovem; ela é mais flexível do que uma estrutura 4+1. Há alguma diferença entre um jovem começar por investir três anos numa formação universitária ou quatro. Quatro anos é muito, sobretudo se um jovem não acerta logo à primeira na sua vocação, se tem de mudar de curso ou fazer outro depois de concluir o primeiro. Isto é positivo e susceptível de atrair mais jovens para o ensino universitário. Além disso, Bolonha permite mais facilmente mudar de área na passagem da licenciatura para o mestrado.

U@O – A mobilidade de estudantes por toda a Europa será também um factor positivo de todo este processo?
J.M.S. – Sem dúvida. A isso acresce também o facto de os jovens poderem contactar com outras áreas de formação, para além da principal (ou major ), e não ficarem restritos a uma só área do conhecimento. Bolonha incita à introdução nos currículos de opções livres e do sistema de major e minor , habitual desde há muito nas universidades da Alemanha e dos países de língua inglesa.





Perfil



José Manuel Boavida Santos nasceu em Lisboa. Foi na capital que fez “o liceu” e foi na universidade da maior cidade portuguesa que acaba por ingressar no curso de Medicina. Recorda “o dissecar de cadáveres e as aulas de um primeiro ano” que acaba por completar. Mas desde os anos de preparação para o Ensino Superior, altura em que começou a estudar Filosofia, que esta disciplina lhe tomou conta do pensamento. O espírito de aventura falou mais alto que a vontade dos pais e “que uma carreira assegurada” e decide abandonar as ciências do corpo para ir estudar Filosofia em França. Parte para terras gaulesas e acaba por fazer o seu mestrado na Universidade de Paris I, Sorbonne. A ida para o estrangeiro deveu-se ao facto de “naquela altura pensar encontrar aí melhores cursos na área que ia estudar”. O francês era a língua estrangeira que dominava “quando era jovem”. José Manuel Santos recorda que, “naquela época, em Lisboa, era tão fácil encontrar nas livrarias obras em francês como em português”. Essa proximidade com a língua gaulesa acabou por ser decisiva na escolha da França como país para “aprofundar os estudos”.
Desde essa altura que se dedicou “ao estudo da Fenomenologia”, corrente filosófica que mais tarde, na Alemanha, também lhe vai ocupar o doutoramento, numa tese que foi dedicada “à filosofia de Edmund Husserl”. É também na Alemanha, em Colónia, que ensinou pela primeira vez, começando por “dar algumas aulas de francês” numa escola de línguas. Em seguida, durante seis anos, ensina Filosofia na Universidade de Wuppertal.
Em 1995 “entrei no curso de Comunicação da UBI”. O docente refere que “já tinha alguma ligação ao jornalismo e à comunicação social”, nomeadamente pela experiência adquirida na rádio “Voz da Alemanha”, onde fez trabalhos como jornalista free-lancer . Na UBI “comecei por leccionar a cadeira de Sociedade e Comunicação” e mais tarde, com a reestruturação do curso, “passei também a ser responsável pela cadeira de Ética”.
Este homem da Filosofia, nos tempos livres gosta de apreciar arte contemporânea, com predilecção para o abstraccionismo expressionista (informal), dar alguns passeios e fazer jogging.