António Bento

Profissão de fé na Universidade


Em qualquer Universidade há (ou deve haver...) três espécies de pessoas, a saber: os estudiosos; os estudiosos que são também professores; e os que vêm para ser ensinados, os estudantes. O que distingue uma Universidade é um modo especial de realização da procura do saber e o que a caracteriza é o modo como essa busca se transforma num empreendimento cooperativo. Os primeiros, que procuram o saber e não a mera aquisição de informação , têm esta distinção por necessária e subtil. O desprezo com que por vezes são bafejados quando o mundo os toma por pobres pedantes alheados da realidade, é quase sempre um erro de avaliação da natureza do seu trabalho. Julga-se a actividade do estudioso pela sua utilidade imediata. Porém, sempre que este critério da utilidade é unicamente encaminhado para a ideia de profissão, a Universidade – uma comunidade de mulheres e de homens criativos que eleva o estudo à universalidade – perde necessariamente a criação como forma de comunidade. De facto, à estranheza hostil e à incompreensão da escola perante a vida – uma vida que precisa da ciência, da arte e da fé – responde muitas vezes a própria vida com uma recusa de todo o poder criativo que não se encontra imediatamente vinculado à profissão.
Como quer que seja, qualquer estudioso sabe que a finalidade da educação não pode ser exclusivamente profissional. E embora a própria profissão de ensinar se imponha inevitavelmente a todo aquele que aprenda genuinamente uma ciência, a profissão (ou o emprego) depende tão pouco da ciência que esta pode em muitos casos excluir aquela. É por isso que nenhuma experiência autêntica de dedicação e de devoção ao conhecimento terá lugar enquanto a Universidade puser no altar das suas mais elevadas esperanças o sacrossanto valor da segurança. Pela mesma razão, onde a ideia dominante (única) da vida universitária é a profissão e o emprego, o job , não há, não pode haver, lugar para a ciência. E menos ainda pode existir e prevalecer o amor à ciência, como entrega e passagem do testemunho da vida e da experiência a uma geração mais nova, enquanto o espírito criador degenerar em espírito de funcionário , enquanto a vida espiritual criadora se encontrar asfixiada pela canga de uma burocracia profissionalizante irracional. Por isso, esta árdua e perigosa entrega à ciência e à juventude, que existe no coração do estudioso como uma generosa capacidade de amar, deve prolongar-se no esforço consequente do discípulo que apanha a flecha do mestre e a lança, por sua própria conta e risco, para outro lado, a fim de que um terceiro a volte a apanhar. É precisamente o impulso de uma tal flecha que deve ser a raiz da sua criação.
Tal como a conceberam e imaginaram os seus fundadores, a organização da Universidade deve fundar-se na potencial produtividade dos seus estudantes. Isto significa que o estudante, de acordo com a sua determinação natural, deve, ele próprio, ser mestre e aluno: mestre, porque a sua produtividade consciente significa aqui uma independência absoluta; aluno, porque a sua alegria e reverência serão sempre para com a própria ciência antes de para com quem a ensina. Eis porque ele deve aprender a ciência dos seus professores sem, contudo, cair na sua profissionalização.
Mas o estudioso é alguém que sabe como dedicar-se à tarefa do estudo. Por isso, a sua voz natural não é nunca nem a do pregador nem a do instrutor. Todos os estudiosos genuínos, uns mais do que outros, comunicam inevitavelmente, a quem seja capaz de o reconhecer, alguma coisa do que sabem acerca do modo como procurar o saber. Contudo, para que uma tal coisa suceda, exige-se-lhes que sejam algo mais do que meros funcionários da educação.
O professor, enquanto estudioso, jamais confunde a Universidade onde trabalha com um Instituto em que se ouve (e fala) apenas uma voz, o altifalante canónico técnico, e menos ainda com um Politécnico, no qual se ensinam apenas os maneirismos das vozes. Ele sabe que a educação pela qual luta consiste em aprender a escutar as pequenas vozes, tornando-se assim surdo aos altifalantes. Ele sabe que uma Universidade que seja digna de ostentar tal nome, a fim de minorar os efeitos destrutivos da passividade com que aí se transmite e recebe o saber, deve promover no seu seio uma cultura de conversação autêntica e humilde. Por isso, procura por todos os meios ao seu alcance incentivar o aluno a não confundir a educação com a estrita preparação para uma profissão, com a aprendizagem dos truques de um ofício.
Consciente de que a educação é um comércio permanente com os maiores espíritos e um treino para a audácia que lhe exige uma ruptura completa com o ruído, com a pressa e com a ausência de pensamento, não ignora que ela é também uma preparação para a mais alta modéstia. Assim, ele não confunde educação – que tem que ver com seres humanos – com funções . É por isso que, como diz Michael Oakeshott, «O dom característico de uma Universidade é o dom de um intervalo. [...] Um período em que o estudante pode olhar para o mundo e para si próprio sem a sensação de ter atrás um inimigo ou sem a contínua pressão no sentido de se decidir; um momento em que pode saborear o mistério sem a necessidade de ter de procurar de imediato uma solução.» Por outras palavras, ele não tem de se preocupar, como dizia o outro, com o “ganhar a vida”, pois que é a altura certa para saber que nasceu de graça.
Eventualmente, o tempo passado na Universidade poderá não o ter apetrechado muito eficazmente para “ganhar a vida”, mas terá aprendido algo que o ajudará a prosseguir uma vida mais significativa, justamente a honra de uma vida com espírito . Como um dia disse Walter Benjamin: «O jovem viverá o espírito, e quanto mais difícil lhe seja conquistar algo grandioso, tanto mais facilmente encontrará o espírito na sua caminhada e em todos os homens. Aquele que está predisposto à experiência será amável como homem adulto. O filisteu, esse será sempre amargo e intolerante.»