É digno e justo o doutoramento honoris causa que a UBI atribui a António Guterres no dia 30 de Abril de 2010. É justo porque mais do que nenhum outro político, antes ou depois, Guterres promoveu o desenvolvimento da Beira Interior. Foi durante o seu governo que medidas estruturantes para a região foram tomadas, nomeadamente a auto-estrada de Abrantes à Guarda, a A23, a extensão do gás natural ao eixo Elvas, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, a criação da Faculdade de Ciências da Saúde, a construção da Barragem do Sabugal, elemento fundamental do Regadio da Cova da Beira. É justo porque, com a criação da Faculdade de Ciências da Saúde em Outubro de 1998, refundou a Universidade da Beira Interior ao dar-lhe uma dimensão bastante para superar as dificuldades próprias de uma universidade jovem, situada numa região despovoada e pobre do Portugal profundo. É justo o grau honorífico, não como paga, que isso não se paga, mas como reconhecimento do mérito de ter cumprido a promessa eleitoral de que “um beirão não esquece o Interior”. E, sobretudo, é digno este doutoramento porque Guterres foi um político de convicções, honrando no exercício do poder os princípios normativos que defendeu e praticou, a solidariedade social, o entendimento e a cooperação entre os povos, o progresso económico pela aposta nas pessoas, o diálogo como método de actuação.
António Guterres professou sempre o apelo profético de uma política de esquerda, a de impor aos condicionalismos realistas do presente o programa generoso de uma realidade social a construir, mais justa e fraterna. O rendimento mínimo garantido, lançado logo no início da sua governação, encarna exemplarmente o compromisso de justiça social, de inclusão dos mais desfavorecidos no todo social. A exclusão social não é um problema apenas dos que ficam de fora ou para trás, é um problema de toda a comunidade, cabendo, por isso, ao Estado combatê-la.
A paixão pela educação, outra das bandeiras políticas de Guterres, traduzia bem a convicção de que competia ao Estado intervir activamente na qualificação escolar e profissional de todos os portugueses em ordem a conseguir uma sociedade mais próspera e justa. Em particular, o ênfase colocado na educação pré-escolar visava esbater logo no início as diferenças sociais que tendem a perpetuar-se de geração em geração. Caberia ao Estado dar às crianças provindas de meios desfavorecidos as oportunidades de formação que as famílias não lhes podiam conceder.
Ninguém pode acusar Guterres de ter embarcado no endeusamento do mercado e da livre iniciativa, que desde Thatcher e Reagan, e com redobrada força depois da queda do muro de Berlim, se tornou pensamento único, inclusive de muitos políticos da esquerda. A confiança cega no mercado e na sua desregulação conduziu a um definhamento do Estado e, em especial, das políticas sociais. Foi preciso que a crise financeira e económica que há dois anos se abateu sobre o mundo viesse mostrar o lado licencioso e ganancioso da desregulação neo-liberal para que se reconhecesse a necessidade de o Estado intervir na sociedade. Veja-se o recente livro de Tony Judt, Ill fares the land, para se perceber que compete ao Estado evitar o regresso ao capitalismo selvagem do início da revolução industrial, em que os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres.
A Agenda de Lisboa, o plano de desenvolvimento aprovado pela Conselho Europeu em 2000 na capital portuguesa de até 2010 fazer da Europa o espaço mais competitivo do mundo mediante uma economia assente no conhecimento, é reveladora do empenho e da acção de Guterres a nível internacional. Com efeito, sendo um dos principais promotores da Agenda de Lisboa -- detinha então a presidência rotativa da União Europeia --, Guterres ambicionou que fossem a educação e a ciência os factores do desenvolvimento económico e social. A aposta de Guterres sempre foi a de valorização dos recursos humanos como factor de crescimento, nunca o crescimento à custa das pessoas, em particular do seu salário ou do nível de vida.
Guterres erigiu o diálogo como método de acção política. Reconhecendo as pessoas como fim último da política, não podia em coerência agir de outro modo. Só os cínicos ou as vanguardas revolucionárias separam meios e fins na política, impondo, se necessário, à maioria o que eles entendem ser o melhor para todos. Governar pelo diálogo significa que não se pode governar sem o contributo e participação daqueles em nome de quem e para quem se governa.
Na política portuguesa António Guterres destaca-se como proposta e exercício do melhor que os portugueses são convocados a fazer pela coisa pública, em prol de todos, sem deixar ninguém para trás. É certo que houve, sobretudo donos da opinião publicada, quem visse nessa proposta e no seu exercício ingenuidade, fraqueza e indecisão. Mas será culpa dos governantes se os governados preferem o autoritarismo ao diálogo, o egoísmo dos interesses particulares à generosidade do interesse público, a imposição à razão? Indisciplinados e desorganizados por cultura e tradição, habituados à cunha e ao compadrio, encostados ao paternalismo estatal, propensos ao autoritarismo governamental, os portugueses têm dificuldade em corresponder a propostas inovadoras e generosas na política. De todos os modos, perdura o desafio lançado por Guterres aos portugueses para conjuntamente fazerem de Portugal um país mais culto e evoluído, mais justo e solidário.
* Reproduzimos o texto de opinião de António Fidalgo alusivo à homenagem prestada a António Guterres, pela UBI, na passada semana.