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As Palavras e as Coisas

Dando porventura razão àqueles cépticos que sempre pensaram ser a universidade portuguesa uma daquelas instituições reputadas incapazes de se reformarem a não ser quando a reforma fosse imposta de fora e com firmeza, estamos hoje perante um processo que vem alterar muito substancialmente, não apenas o modo de funcionamento da universidade em Portugal mas também implicar alguns pressupostos de base radicalmente novos.
Fiéis como somos ao nosso tradicional gosto, sempre soando tão estranho a ouvidos estrangeiros, de multiplicar as forma de tratamento alambicadas com a designação explícita e ostentatória das habilitações conquistadas (aqui está uma metáfora só por si reveladora: a habilitação como "conquista" com toda a sua conotação de violência e esforço), tem-se vindo, por vezes, a enovelar a discussão sobre a reforma imposta pela declaração de Bolonha a um problema de designação de títulos. Como é possível uma licenciatura de 3 anos! Isso não passa de um bacharelato!, etc.
Às vezes o uso de palavras já muito carregadas das suas conotações tradicionais, bloqueia a compreensão de novos conceitos que se querem inovadores. Mas que ficam obnubilados pela carga de sentido, nomeadamente cerimonial, que os termos usados anteriormente tinham numa determinada cultura socialmente hierárquica, como a nossa, que fazia do licenciado um doutor.
Bolonha, por abreviação assim designada a reforma, vem implantar um novo estado de coisas nominal mas que é muito mais do que isso. Embora aqui, exemplarmente, as palavras condicionem as coisas que querem designar. O que Bolonha realmente significa é o desvanecimento de expressões como "licenciatura" ou "mestrado." Aliás, para pensarmos bem as consequências do tratado e da sua aplicação ao caso português, teremos de ir abdicando desses termos cujo afastamento só clarificará o que está realmente em causa.
Provavelmente as designações "primeiro ciclo" e "segundo ciclo" irão substituindo, com vantagem, as antigas.
Não se trata aqui, obviamente, de uma "mera" questão de palavras. As anteriores designações referiam-se a uma antiga concepção da universidade como um local e um tempo na vida de cada um em que se aprendia tudo o que havia a aprender, se obtinha uma licença para exercer uma profissão e depois se vivia dos rendimentos desse saber então acumulado para o resto da vida. A universidade antiga vivia sob o signo da angústia do saber todo que era o que tinha de inculcar nas mentes e para sempre porque era nela que estavam os sujeitos supostos saber, seus verdadeiros e totais detentores, do saber todo. Por isso essa universidade se organizava em torno do espaço e do tempo da leccionação, momento e lugar em que o conhecimento se transmitia.
Bolonha deveria, e provavelmente consegui-lo-á a médio ou longo termo, revolucionar esta organização mental das coisas universitárias. Porque descentra o pólo da actividade de aprendizagem e, fazendo-o, modifica a sua própria natureza bem como das mentalidades que a fazem viver. Descentrando o tempo estudantil relativamente à passividade receptiva e procurando valorizar a dimensão activa da aprendizagem, Bolonha irá obrigar não só os docentes a modificar os seus métodos de ensino mas também, e muito fundamentalmente, revolucionar a atitude estudantil perante a escola e a sua própria identidade como estudante.
Primeiro porque passa a ser uma identidade não confinada num tempo juvenil delimitado entre a caloiridade e a veterania (diga-se que o termo "veterano", também aplicado aos antigos guerreiros, diz tudo sobre o que se entende por definitivo como formação daqueles que o podem usar. A qualidade de veterano é acabada, irrepetível. Quando se é, é-se o para sempre). Ora Bolonha, instituindo até a designação de ciclos seriados, sublinha a continuidade inacabada de um processo que está destinado a nunca se completar. Porque o saber todo, hoje, não passa de uma miragem destinada a ser perseguida, sim, mas sem jamais poder ser alcançada.
Segundo porque ao descentrar o acontecimento lectivo da transmissão localizada na sala de aula, pretende estimular a aprendizagem como procura e a leccionação como guia nos caminhos da descoberta e da reflexão. Acontecimento lectivo que não é apenas o da sala de aula mas também a activa perseguição de um saber que se vai construindo com o apoio tutelar do docente.
É claro que isto representa um desafio também decisivo para o/a estudante cuja mentalidade terá porventura de mudar muito radicalmente. De uma atitude passiva marcada pela recepção de um discurso destinado a ser memorizado para logo se esquecer, do estudante exigir-se-á uma muito mais incómoda actividade de investigação, leitura e reflexão.
Não me parece de menos sublinhar este aspecto. Fala-se muito das transformações que Bolonha vem trazer à instituição universitária, mas não se tem talvez estado tão atento às novas mutações que a identidade estudantil, e sobretudo o seu ethos, terão de sofrer.
Disso dependerá sobremaneira o êxito de Bolonha na Universidade Portuguesa


Data de publicação: 2006-06-06 01:06:58
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