Voltar à Página da edicao n. 384 de 2007-06-12
Jornal Online da UBI, da Covilhã, da Região e do Resto
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> <strong>José Moutinho</strong><br />

Será que o doente deve saber que tem cancro?!

> José Moutinho

Se o doente deve saber ou não que tem cancro tem sido assunto de debate que tem animado muita discussão, está longe de ser consensual, e pode ser abordado de muitas facetas. Pontos de vista diversos, de carácter filosófico, psicológico, sociológico e político, entre outros, multiplicam-se em argumentos a favor e contra. Nestas linhas pretendo discutir a questão no sentido da prática médica, e com isso lançar mais umas “achas na fogueira”.
A Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes, que pode ser consultada no site da Direcção Geral de Saúde, define como 6º direito do doente: “O doente tem direito a ser informado sobre a sua situação de saúde” e explicita – “Esta informação deve ser prestada de forma clara, devendo ter sempre em conta a personalidade, o grau de instrução e as condições clínicas e psíquicas do doente. Especificamente, a informação deve conter elementos relativos ao diagnóstico (tipo de doença), ao prognóstico (evolução da doença), tratamentos a efectuar, possíveis riscos e eventuais tratamentos alternativos”, mas mais adiante acrescenta – “O doente pode desejar não ser informado do seu estado de saúde, devendo indicar, caso o entenda, quem deve receber a informação em seu lugar”. De uma forma aligeirada pode-se dizer que o doente tem o direito de ser informado sobre o seu estado de saúde e o direito de não ser informado sobre o seu estado de saúde. Em Oncologia, o médico não pode perguntar frontalmente ao doente com cancro se quer ter conhecimento da sua doença – por exemplo, não lhe pode perguntar: o Sr. quer ou não quer que o informe se que tem cancro? Cabe ao próprio médico, face ao doente concreto que tem à sua frente, avaliar quais as informações que são mais convenientes transmitir-lhe. Essa avaliação é sempre subjectiva, passível de erro e até pode ser mal-intencionada. Há que ter regras, que pontualmente poderão ser quebradas, mas que são normas de conduta que definem o próprio médico e da instituição em que está inserido.
O espectro cancro ainda continua a ser assustador, apesar dos muitos avanços que se têm verificado nos últimos anos, tanto no diagnóstico, como nas possibilidades de tratamento. De facto, hoje convivemos com três vezes mais pessoas que sobreviveram ao cancro (estão vivas há mais de 5 anos a contar da data do diagnóstico) do que com mulheres grávidas. As coisas já não são como eram há 20 ou 30 anos atrás! No entanto, o cancro continua a ser considerado como uma doença “má”, “ruim”, “maldita”, e muitas pessoas com cancro, ainda hoje, se sentem descriminadas, mesmo pelos seus próprios amigos, vizinhos e colegas de trabalho, que tantos estimavam. É compreensível que muitos doentes tenham medo de saber ou que se venha a saber que têm cancro. A questão é saber se essa atitude de “enfiar a cabeça na areia”, traz algum benefício para o doente. Pessoalmente, e a minha prática clínica corrobora essa impressão, acho que não, pelo contrário, apenas o prejudica.
Entendo que devemos ter a frontalidade e a coragem de incentivar todos os doentes com cancro a “enfrentarem o boi pela frente” e a lutarem “ferozmente” para se curarem, mesmo nos casos mais difíceis, mas para isso, eles próprios, os familiares e ao amigos mais chegados têm que ter o conhecimento da doença, e principalmente da forma como todos devem colaborar para a êxito dos tratamentos.
Na prática clínica diária, todos os actos médicos devem ter uma finalidade prática e positiva no sentido de curar a pessoa que temos na nossa frente. Se não o tiverem, devem ser considerados inadequados, e podem prejudicar o doente. Perguntar a um doente com cancro do pulmão se é fumador é útil para a caracterização da doença e para a modificação dos seus hábitos, mas perguntar ao mesmo doente se fez a vacina contra a hepatite B (que o médico pode facilmente saber por análises ao sangue) é irrelevante para o diagnóstico e para o tratamento da doença e pode perturbar o doente ao fazê-lo pensar que a sua doença foi causada por ter feito ou não a vacina contra o vírus da Hepatite B. Da mesma forma, pedir ao referido doente com cancro do pulmão para fazer exames com a finalidade de se saber se a sua doença está espalhada pelos ossos, é lícito e desejável, porque isso pode modificar a estratégia do tratamento. No entanto, solicitar ao mesmo doente exames para saber se ele tem osteoporose (ainda que a pedido do doente), é incorrecto, porque lhe pode desviar a atenção para uma doença que não lhe põe a vida em risco a curto prazo, e o pode levar a menosprezar o urgente tratamento do seu cancro. Também, iniciar o tratamento do mesmo doente com cancro do pulmão por corrigir uma Diabetes descompensada pode ser muito vantajoso para a tolerância ao tratamento do cancro, mas permitir que o doente seja operado às “cataratas” antes de iniciar o seu tratamento ao cancro (mesmo que isso seja muito do desejo pelo doente) significa atrasar o início do tratamento, o que pode interferir nas possibilidades de cura do cancro.
Vemos assim que cabe ao médico sugerir e orientar as atitudes que o doente deve ter durante o todo processo de diagnóstico e tratamento da sua doença, levando-o a ter uma participação activa, persistente e colaborante. É difícil de compreender que alguém adopte uma atitude activa, persistente e colaborante, se não tiver conhecimento da causa pela qual está disposto a lutar! Com o doente com cancro passa-se o mesmo. Explicar ao doente o seu estado de saúde é útil e benéfico. É pedir, e mais do que isso, é apelar para que ele veja a necessidade de se empenhar entusiasticamente no tratamento da sua doença, com benefício próprio, e da própria equipa clínica, porque nenhum médico gosta de ter insucessos!

Professor da Faculdade de Ciências da Saúde da UBI


Data de publicação: 2007-06-12 00:00:00
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