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Opinião       



 

O estranho mundo
da
melancia literária

POR RUI PELEJÃO*


Já li o livro "Sei lá" de Margarida Rebelo Pinto, confesso. A minha irmã comprou-o, e eu que sou um desalmado li-o às escondidas, como costumava fazer com os livros da Anita - com o mesmo prazer culpado e pouco masculino de ler "Anita no campo".
Confesso que li. Confesso que deixei a nova edição do "Fausto" de Goethe "Debaixo do Vulcão" de Malcom Lowry e maliciosamente encostado ao "Ulisses" ad eternum de Joyce. Ad eternum porque ando há uma eternidade a angariar coragem para passar um dia em Dublin a ler "o romance do século passado".
Confesso que li "Sei lá" de Margarida Rebelo Pinto. Prometo que vou penitenciar-me junto do padre Santiago, pode ser que ele me receite as obras completas do Padre António Vieira, a ver se me expurgam as tentações mundanas da literatura FNAC.
Que me perdoem as eminências pardas das letras portuguesas, os críticos de sabre em punho. Que me perdoem tamanho e hediondo crime.
Que me perdoe Eduardo Prado Coelho por ceder à tentação de um "fenómeno sociológico" e pela pseudo-literatura que se digladia nos escaparates com as "Páginas Amarelas". Que me perdoe o Jacinto Lucas Pires - esse sim um "grande" escritor, a quem a crítica oficial estendeu passadeira vermelha e beneplácidos "papais".
Que me perdoe Jacinto, pela intransponível "apneia militante" que me semicerra os olhos quando leio a sua suada prosa poética de: um homem, uma mulher, um frigorífico, um poste iluminado. Um poste iluminado que, como para os bêbedos, serve mais para nos agarrarmos do que para nos alumiar. Que me perdoem todos porque pequei.
Quem tem medo de Margarida Rebelo Pinto
"Sei lá" não é um livro "fundamental" da moderna literatura, nem Margarida Rebelo Pinto a melhor escritora do seu bairro finório. A autora limitou-se a pegar num mundo que conhece e a utilizar uma fórmula "super-pop limão" para o retratar, inaugurando em Portugal o que no estrangeiro é mais velho que as plásticas de Jackie Collins - o romance "pop". Veja-se os casos de Alex Garland ou Irving Welsh (incomparavelmente melhores que a nossa Margarida).
Neste caso, o romance é mais "queque", "quecas", T-Club, copos e o mundo cão dos jovens profissionais liberais, de carteira cheia e cabeça vazia.
A fórmula é pueril - diálogos G-3 (de rajada), perfis psicológicos das personagens com a densidade de uma folha de papel vegetal, e prontinho, aí está ele - o romance modernaço, pré-fabricado, bom para os adolescentes lerem enquanto espremem pontos negros.
O "fenómeno sociológico", epíteto com que Eduardo Prado Coelho mimoseou o livro de Margarida, encobre um outro fenómeno, a meu ver, bem mais interessante, porque se para Margarida o lema é: "Quanto mais me crucificam mais eu vendo", para os outros a tormentosa questão é: "Como é que ela consegue vender tanto se eu, que escrevo melhor que o Marcel Proust e o Eça juntos, não vendo nada". A isto se chama o fenómeno Melancia. O mundo das letras português é uma rechonchuda e aquosa melancia, servida por um punhado de "feitores" que cortam as talhadas e as distribuem a seu bel-prazer entre o séquito merecedor dessa imensa e sumarenta graça.
Imaginem uma tira de BD do Maurício nos livros da Mónica: o Cebolinha, o Cascão e a Mónica decidem organizar uma festa onde uma roliça melancia é a piéce d' résistance, mas quando se preparam para a lambusice do delicioso fruto, aparece a abelhuda da Magali, que como se sabe é uma doidivanas por melancia, e que sem cerimónias se abarbata a uma leonina talhada.
Pois bem, neste caso a Magali é a Margarida Rebelo Pinto e os restantes personagens são os "ditadores do bom gosto literário", furiosos com a aparição desta comensal "alienígena" aos seus círculos de "talhada de melancia literária"; preocupados com o interesse que o público e as editoras parecem preparados para dedicar à escrita ultra-leve, desempoeirada e toda Prá Frentex, que este "fenómeno sociológico" pode desencadear.
O que é de espantar é que este efeito de "tempo detergente" (como dizia O'Neill) não acostasse mais cedo às margens da lusa literatura. O cinema português, pela "mão invisível" da SIC, esse já tombou aos encantos do marketing, da box-office e do gosto popular. Parece soar a hora da literatura. Importa é saber se, tal como no cinema, os produtos comerciais vão varrer as obras de arte e os genuínos autores.
Os novos filmes portugueses e o sucesso do livro de Margarida Rebelo Pinto revelaram que há um público carente de "consumo de bens ditos culturais" ou de "fast culture". Um público que não é necessariamente o mesmo que, justa ou injustamente, dedica lealdade aos filmes que não ultrapassam os mil espectadores ou aos livros que não chegam a vender mil exemplares. Parece-me que os zeladores da melancia ainda não se aperceberam que estão a guardar para si uma melancia de que apenas podem trinchar uma talhada. Chama-se a isso ter mais olhos que barriga.

 

* BEIRA IN / AAUBI

 

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