Clique aqui para regressar à Primeira Página



 

Aldeia de crianças SOS da Guarda
Filhos da Solidariedade


De características únicas na região, a Aldeia SOS da Guarda dá a cada criança a possibilidade de conhecer a vivência em família. Os jovens encontram um lar que lhes permite refazerem a sua vida e apagar traumas passados. A revolta começa quando chegam à adolescência.

 

TEXTO RICARDO GUEDES PEREIRA*
FOTO JOANA MATOS

 

Depois de terem atravessado o portão de entrada da Aldeia de Crianças SOS, o Filipe e os seus quatro irmãos deixaram para trás uma vida marcada pelos maus tratos físicos e emocionais, na cidade de Seia. Hoje recordam aquele momento como o gesto que lhes devolveu a alegria de viver, ao restituir-lhes a dignidade que aos poucos estava a ser roubada por um ambiente familiar distorcido.
Filipe é agora um jovem com problemas e sonhos comuns aos da sua idade. Passados 13 anos, ainda há, todavia, um longo caminho a percorrer para que a sua integração na sociedade seja completa.
Para lá dos muros da Aldeia de Crianças SOS da Guarda, ele e os seus irmãos encontraram um lar e uma família que os acolheu de braços abertos. À sua espera estava Cecília Francisco, uma desconhecida que algumas semanas depois chamavam de mãe, e outras crianças que haviam passado por tormentos semelhantes. "Com a sua alegria e inocência", foram os seus colegas que tornaram a fase de adaptação mais fácil.
O apoio que aquela instituição de solidariedade social presta aos mais novos funciona em moldes únicos, tanto a nível do País como do estrangeiro. A Aldeia SOS da Guarda, que acolhe neste momento 32 crianças, está filiada na Kinderdorf Internacional, uma rede de instituições cujo modelo nasceu na Áustria, no conturbado período que sucedeu à Segunda Guerra Mundial. Existem mais de cinco aldeias com estas características nos cinco continentes, o que a torna na maior instituição mundial de apoio à criança. Para além da Guarda, também Bicesse, no Estoril, e Gulpilhares, no Porto, acolhem espaços desta natureza.
As Aldeias de Crianças SOS distinguem-se de outras instituições com o mesmo fim pelo facto de acolherem grupos de irmãos. Outro pormenor que as torna especiais é a coabitação de crianças, sem distinção de sexo, até atingirem a maioridade. Deste modo, desde que foi fundada em 1986, a Aldeia da Guarda junta na mesma casa rapazes e raparigas que convivem como se fossem irmãos de sangue. A acompanhá-los está uma mãe SOS que zela por eles 365 dias por ano e 24 horas por dia. "No essencial é uma família", conclui a directora da Aldeia, Maria do Carmo. Cada uma dispõe do seu quarto, do seu espaço e dos seus objectos.
No projecto inicial, foram suprimidos os refeitórios e dormitórios, para que, segundo a directora, "cada criança tenha um tratamento muito personalizado". Cabe ao Estado assegurar a "fatia de leão" do financiamento necessário ao seu funcionamento normal. O resto do montante é disponibilizado por sócios, benfeitores e pela Kinderdorf Internacional.

Mães SOS escasseiam

Um dos problemas mais difíceis de resolver para a instituição é a escassez de mães SOS. Para além de Cecília Francisco, existem mais três pessoas a cuidar dos jovens. A somar a este número, a Aldeia de Crianças, depois de uma intensa campanha, prepara-se agora para receber mais uma voluntária. "Temos aqui 32 crianças, mas há lotação para 50. isto acontece porque não há mães para abrir mais casas", lamenta a directora. "No início foi mais fácil o recrutamento. Nessa altura havia religiosas e outras mulheres mais disponíveis. Agora é mais difícil. A sociedade mudou muito. Para virem para aqui, as mães SOS têm de cortar com a sua família de origem para se dedicarem totalmente a estas crianças", acrescenta.
Todas as voluntárias da Guarda já atingiram os 40 anos de idade. São mulheres solteiras ou divorciadas que decidiram dedicar a sua vida à instituição. Não são aceites mães solteiras com filhos porque, explica Maria do Carmo, "é muito difícil gerir a diferença entre filhos legítimos e adoptivos. Há sempre ciúmes e desconfianças".
No passado, um casal assegurou a manutenção de um lar. Esta situação foi, no entanto, um caso pontual, que a directora da Aldeia SOS da Guarda gostaria de ver repetida.

Adopção é um processo complicado

A política de apoio à criança em Portugal, no que diz respeito a crianças orfãs ou cujos pais são incapazes de garantir a sua educação, favorece a adopção por parte de jovens casais. No entanto, é frequente surgirem alguns impedimentos que obrigam os tribunais e os centros regionais de Segurança Social a "entregar" as crianças a instituições de solidariedade social. Um desses impedimentos é a possibilidade de os próprios pais recusarem que os filhos sejam adoptados por outros casais. A juntar a isto, acontece também serem os casais de adopção a rejeitarem o acolhimento a grupos de irmãos.
A Aldeia SOS beirã é, por aqueles motivos, o único "porto de abrigo" onde rapazes e raparigas, ainda bebés, recebem o auxílio necessário. "Aqui não dividimos os irmãos, procuramos manter os laços de sangue. Uma vez que perdem os pais, ao menos que mantenham esses laços", enfatiza Maria do Carmo.
Ao contrário de outras instituições de solidariedade social que possuem equipamentos de apoio no seio das suas instalações, as Aldeias SOS procuram que os seus educandos frequentem todas as instituições e participem em todas as actividades que a comunidade exterior oferece, nomeadamente creches, estabelecimentos de ensino e escolas de formação profissional. A interiorização de normas de conduta e de ordem leva ainda as mães SOS a, desde muito cedo, incentivar as crianças a realizarem um pequeno número de tarefas que "propiciem o desenvolvimento das suas capacidades mentais, logo que tenham alguma habilidade".

Visitas são raras

A recuperação do equilíbrio psicológico dos jovens quando chegam maltratados à Aldeia SOS é uma conquista morosa e na qual os obstáculos e recuos são frequentes.
Neste contexto, é muito difícil estabelecer em que condições, por exemplo, se devem processar as visitas de familiares, sobretudo dos pais. O regulamento da Associação das Aldeias apenas permite a realização destes encontros uma vez por mês. "Se o contacto for muito frequente dificulta-nos o trabalho. As crianças muito pequenas ficam divididas. Têm dificuldade em entender porque é que não estão com os pais. É muito importante que cresçam com uma imagem positiva dos seus progenitores", sublinha a máxima responsável pela instituição guardense.
Apesar de parecer muito restrita nesta norma, a verdade é que a esmagadora maioria dos jovens não são visitados durante anos por qualquer familiar. As ausências prolongadas geram crises pontuais. "Temos que fazer, às vezes, um esforço muito grande para os pais virem cá vê-los".

*NC / Urbi et Orbi

 

 [ PRIMEIRA PÁGINA ]