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         Dualidades Patrióticas 
 
        Nuno
        Miguel Augusto 
        Há uns dias, ouvia o meu
        sobrinho de 8 anos cantarolar o hino nacional enquanto manuseava
        a revista dos Pokemón. Nas televisões, sucederam-se
        as imagens de pequeníssimos cidadãos cantando o
        hino nacional numa escola que se pretende multicultural e aberta
        a uma cidadania global. Mesmo que subjectivamente, parece termos
        sido invadidos por uma estranha e nova justificação
        dos problemas - a globalização. 
        Aquando da remodelação governamental, o Engº
        António Guterres inicia o discurso culpabilizando o exterior
        pela crise política que tinha conduzido à dita
        remodelação. A globalização é,
        segundo o Primeiro Ministro, o móbil das irregularidades
        internas. Começando pela União Europeia e acabando
        na OPEP, é a realidade extra-muros que condiciona a gestão
        interna. Para além desta, sobra uma identidade nacional
        assente em hinos e bandeiras que, em muito pouco, transforma
        as condições reais internas. 
        Num momento em que vivemos a maior das transformações
        da concepção de soberania, assistimos a um retorno
        aos símbolos nacionais de um modo desesperado e impaciente.
        Venerados que estão os símbolos de referência
        nacional, o exterior passa a funcionar como elemento de identização,
        isto é, de oposição. Uma vez mais, a casa
        constroi-se pelo telhado, não reconhecendo que a construção
        de uma identidade nacional passa crescentemente pela comparação
        entre diferentes realidades nacionais. É evidente que,
        para o português comum, os modos de vida ou mesmo a capacidade
        de participação de um alemão ou de um francês
        são ambicionáveis, mas não forçosamente
        culpabilizáveis. 
        Do lado da oposição, o espectro não é
        menos nacionalista. É-o, mas por vias distintas. Enquanto
        que a vertente socialista culpabiliza os países mais ricos,
        desde a U.E. à O.P.E.P., os partidos da chamada "direita",
        defendem-se, ainda que indirectamente, com o exterior pobre.
        A oposição, se assim considerarmos o P.S.D. e o
        P.P., apostam actualmente no fantasma do inimigo, mas não
        o mesmo inimigo de Guterres. O seu inimigo são claramente
        os provenientes dos países pobres, estigmatizados e culpabilizados
        pelo crescimento da insegurança. 
        A cupabiliação das minorias raciais ou étnicas
        tem estado claramente associada ao crescimento da insegurança,
        não porque essas minorias sejam "naturalmente"
        delinquentes, mas porque a marginalização ou incapacidade
        de inserção destes novos actores sociais lhes permitiu
        pouco mais que a sua estigmatização. Não
        estranha, portanto, o ganho de visibilidade dessas minorias em
        situações de acréscimo da insegurança.
        O processo poderia ser idêntico, caso os países
        de emigração dos portugueses não tivessem
        tido a capacidade para os inserir social e culturalmente.  
        Este lado "opositor" é, em muitos aspectos,
        comparável com o lado "governador", pois ambos
        apostam numa recusa, ainda que simbólico-ideológica,
        da globalização e num reforço do nacionalismo.
        Ainda nenhuma das forças políticas portuguesas
        maioritárias percebeu que a soberania actual é,
        no essencial, uma soberania dialogal, aberta e não enclausurada.
        Portugal enfrenta uma situação muito idêntica
        à de um clube de futebol que sempre jogou na terceira
        divisão e, milagrosamente, enfrenta um campeonato europeu.
        Ambas as polos político-ideológicos persistem na
        construção de argumentos discursivos que, na tentativa
        de legitimar realidades intra-partidárias ou nacionais,
        acabam por responsabilizar os programas políticos externos,
        quer objectiva, quer subjectivamente. A procura desses quadros
        funciona, hoje, como um dos principais argumentos para a incapacidade
        interna em manter a coerência com uma globalização
        que é, claramente, irreversível. 
        A responsabilização externa funciona, em grande
        medida, como o tampão das hemorragias internas, adiando
        a tentativa em acompanhar uma dinâmica global. Os apelos
        à cidadania metem os pés pelas mãos. Do
        lado governamental, tão depressa se cyberviciam os modos
        de vida, como se destribuem kits patrióticos, isto é,
        não se sabe bem se olhar para fora ou se olhar para dentro.
        O pior é que, "se de um lado chove, do outro faz
        vento". O contexto internacional não atravessa propriamente
        o melhor momento, quer do ponto de vista económico, quer
        do ponto de vista social ou político. Economicamente,
        reinstaurou-se o fantasma da crise petrolífera de 1973
        e, tal como nesse tempo, o capital recua, argumentando dificuldades
        e fragilizando o papel do Estado. Socialmente, crescem, em paralelo,
        velhos e novos tipos de pobreza, face a um Estado Providência
        ainda sem grandes orientações próprias.
        Politicamente, cresce a instabilidade, a sobrevalorização
        dos partidos políticos e a abstenção política
        e eleitoral, assim como uma relação instável
        com o processo de globalização. 
        A instabilidade da relação entre o exterior e a
        identidade nacional marca, ainda hoje, o modo de estar político
        português. Existem indicadores que demonstram um certo
        carácter dúbio no modo como se constroi a inserção
        social e política dos cidadãos na nação
        portuguesa. Os símbolos nacionais foram, em determinados
        momentos históricos,  um dos principais instrumentos para
        a obediência e para a integração de determinados
        grupos sociais. O seu resultado na actualidade pode, no entanto,
        ser contraproducente, dada a inevitável contraposição
        com os sistemas políticos trans-nacionais. 
         Mesmo que inconscientemente, os principais partidos políticos
        portugueses constroem, entre si, um cenário dual, que
        oscila entre a responsabilização do exterior e
        as alternativas patrióticas. A responsabilização
        varia de partido para partido, apenas com a particularidade de
        o partido do Governo a orientar mais para os países ricos,
        enquanto que a direita responsabiliza os países mais pobres,
        subrepticiamente, através da criação de
        sentimentos de insegurança. Num tal contexto, as alternativas
        patriótoicas são, no mínimo, questionáveis
        e requerem uma avaliação mais profunda do programa
        político português, nomeadamente no que concerne
        à globalização. 
        A campanha patriótica que percorre as escolas primárias
        é, no essencial, ineficaz e contraproducente, face a um
        contexto em que a adaptação política e identitária
        à globalização se depara, ainda, com importantes
        bloqueios estruturais. 
        A memória colectiva e a identidade nacional não
        se brindam em kits patrióticos como quem oferece revistas
        de cromos, estruturam-se em sentimentos de pertença e
        de participação que garantem coerência a
        essa identidade e que promovem a participação em
        defesa de uma identidade positiva. Simbolicamente, "a portuguesa"
        pode ter uma diversidade de interpretações, dependendo
        do indivíduo que as acolhe e as processa na sua consciência.
        Depende também da maior ou menor profundidade da actual
        quebra dos laços sociais com o Estado e do sentimento
        de inclusão ou exclusão relativamente a este. O
        resultado poderá ser igualmente dual, concentrando de
        um lado aqueles que confundem patriotismo com nacionalismo e,
        do outro, aqueles que revêem na Nação pouco
        mais que a sua exclusão. 
 
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