Clique aqui para regressar à Primeira Página


      

Opinião       


 


Jorge Bacelar

O triunfo dos porcos
      
[ meditação sobre a praxe ]

Os caloiros, ambivalentes naquilo que sentem nestes primeiros dias de academia, oscilando entre a alegria de "ter entrado" e a agonia de uma radical mudança na existência, estão também sujeitos a uma das mais asquerosas, acéfalas e indescritíveis cerimónias de iniciação à vida académica: a praxe.
É doloroso assistir às humilhações e ritos cretinos a que se sujeitam com um sorriso amarelo e subserviência canina. Faz-me pensar na alegria dos primeiros cristãos (segundo aprendi na catequese) que cantarolavam salmos quando eram lançados aos leões ou ao fogo. Na perspectiva desses pobres coitados, tratava-se tão-só de uma iniciação um tanto ou quanto desagradável - um rito - "para entrar" no reino dos céus.
Pois isto aqui não é reino nenhum. É só uma escola. E esta escola está numa república e uma das leis que temos, chamada Constituição, diz a páginas tantas: "A integridade moral e física das pessoas é inviolável." (Art.º 25.º § 1).

Agora vocês, veteranos. Eu bem vos vi vestidinhos de branco e com as velinhas acesas por Timor. E com as vossas carinhas pintadas de preto e branco a dizer todos diferentes todos iguais. E com a fitinha vermelha da Abraço. Como sois tão correctos, tão humanistas, quando os direitos humanos são estraçalhados no abstracto! Timor é longe como o raio e os skins a bater nos pretos e nos turcos é coisa mal vista pela comunicação social e, portanto, mal vista por todos, vocês incluídos. Mas como a praxe é um assunto doméstico, pouco mediatizado (ainda não mataram nenhum caloiro com a praxe...), bora lá, que nós também fomos praxados quando aqui entramos! Pois ó humanistas de pacotilha, a Declaração Universal dos Direitos Humanos por que vocês tanto vociferaram nas manif's por Timor (até acredito que nunca a tenham lido, mas isso é outro assunto...) diz esta enormidade: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade."

Segue-se o direito de resposta da comissão da praxe: "Isso tá bem para Timor ou para os bósnios, agora os caloiros, pá, tázaver, é só umas brincadeirinhas p'ós integrar no espírito da coisa, tázaver méne? A gente só les rapa uns cabelitos, pintales a fuça c'umas cores baril, embebedamos as chavalas pá, tudo na boa, sem violência. Uns piparotes, pô-los de joelhos e de quatro, meu, limpam-nos a casa durante o primeiro semestre, não os deixamos dormir, damo-lhes umas alcunhas giras, méne, é tudo brincadeira, é a tradição académica em toda a sua pujança."

Por "tradição" entendem-se os argumentos que sustentam a "praxe" com base numa imaginária "herança cultural" ou num mais prosaico " sempre foi assim, sempre assim será". É falso. Nunca houve em Lisboa ou Porto nada que se lhe assemelhasse, e em Coimbra a "praxe" estava esquecida desde o final dos anos 60, vista como anacronismo paleolítico e identificada com as seitas mais retrógradas e fascistas dentro da Universidade; do mesmo modo, justificar da praxe pela "tradição" na Universidade da Beira Interior ou de Trás-os-Montes só pode ser sintoma de paralisia cerebral. E quem diz Universidade, diz Politécnico, diz secundário, que a grunhice praxista não é exclusiva das universidades, e já há putos do 7º ano com medo de ir para a escola por causa "dos grandes"...
Pode objectar-se que as tradições se inventam. Sim senhor. A criação de tradições até se pode revelar muito útil; por exemplo, desde 1974 que tentamos criar uma tradição democrática (com sucesso relativo); e seria óptimo se se inventasse uma tradição de elevada exigência perante os serviços, universidades incluídas. Mas a ideia de tradição é, nesta acepção, uma mera bengala para justificar as pulhices que se possam cometer. Pelo facto de algo ser tradicional não é implícito que o aceitemos sem restrições. Assim, este tipo de argumento é apenas um meio (muito fraco) de evitar a discussão da utilidade e justificação da praxe. Mas nem é aqui que reside o problema. A praxe, em si, seria uma questão menor, se não fosse um reflexo do país em que vivemos, se não fosse o reflexo de outros problemas, esses sim, preocupantes. A praxe é um ritual que tem por objectivo impor a submissão à autoridade, mesmo que esta seja desprovida de qualquer legitimidade. É mais um instrumento de inserção social não questionada, que silenciosamente se vai impondo e adquirindo. É mais um instrumento subliminar na autoreprodução de uma sociedade conservadora e conformista.

A iniciação e integração dos caloiros pode ser feita de outras formas, mais próximas daquilo que os futuros doutores querem parecer socialmente: inteligentes, civilizados, divertidos, cultos, mundanos. As praxes, como têm sido feitas ultimamente, só revelam uma coisa: grunhice. E é pena desbaratar o orçamento do ensino para formar grunhos.
Chamo a vossa atenção para o artigo 21.º da Constituição - Direito de Resistência: "Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdade e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública." Pensem nisso.

Para a redacção deste texto vali-me de alguns dos comentários sobre a praxe no artigo de Pedro Estevão "A 'praxe' ou a revolta dos medíocres", publicado no jornal on-line NON <http://www.zonanon.com>. Como vêem, a honestidade intelectual fica sempre bem.

 

 [ PRIMEIRA PÁGINA ]