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             O triunfo dos
            porcos 
                  [ meditação sobre a praxe
            ] 
             
            Os caloiros, ambivalentes naquilo
            que sentem nestes primeiros dias de academia, oscilando entre
            a alegria de "ter entrado" e a agonia de uma radical
            mudança na existência, estão também
            sujeitos a uma das mais asquerosas, acéfalas e indescritíveis
            cerimónias de iniciação à vida académica:
            a praxe. 
            É doloroso assistir às humilhações
            e ritos cretinos a que se sujeitam com um sorriso amarelo e subserviência
            canina. Faz-me pensar na alegria dos primeiros cristãos
            (segundo aprendi na catequese) que cantarolavam salmos quando
            eram lançados aos leões ou ao fogo. Na perspectiva
            desses pobres coitados, tratava-se tão-só de uma
            iniciação um tanto ou quanto desagradável
            - um rito - "para entrar" no reino dos céus. 
            Pois isto aqui não é reino nenhum. É só
            uma escola. E esta escola está numa república e
            uma das leis que temos, chamada Constituição, diz
            a páginas tantas: "A integridade moral e física
            das pessoas é inviolável." (Art.º 25.º
            § 1). 
            Agora vocês, veteranos.
            Eu bem vos vi vestidinhos de branco e com as velinhas acesas
            por Timor. E com as vossas carinhas pintadas de preto e branco
            a dizer todos diferentes todos iguais. E com a fitinha vermelha
            da Abraço. Como sois tão correctos, tão
            humanistas, quando os direitos humanos são estraçalhados
            no abstracto! Timor é longe como o raio e os skins a bater
            nos pretos e nos turcos é coisa mal vista pela comunicação
            social e, portanto, mal vista por todos, vocês incluídos.
            Mas como a praxe é um assunto doméstico, pouco
            mediatizado (ainda não mataram nenhum caloiro com a praxe...),
            bora lá, que nós também fomos praxados quando
            aqui entramos! Pois ó humanistas de pacotilha, a Declaração
            Universal dos Direitos Humanos por que vocês tanto vociferaram
            nas manif's por Timor (até acredito que nunca a tenham
            lido, mas isso é outro assunto...) diz esta enormidade:
            "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade
            e em direitos. Dotados de razão e consciência, devem
            agir uns para com os outros em espírito de fraternidade."
             
            Segue-se o direito de resposta
            da comissão da praxe: "Isso tá bem para Timor
            ou para os bósnios, agora os caloiros, pá, tázaver,
            é só umas brincadeirinhas p'ós integrar
            no espírito da coisa, tázaver méne? A gente
            só les rapa uns cabelitos, pintales a fuça c'umas
            cores baril, embebedamos as chavalas pá, tudo na boa,
            sem violência. Uns piparotes, pô-los de joelhos e
            de quatro, meu, limpam-nos a casa durante o primeiro semestre,
            não os deixamos dormir, damo-lhes umas alcunhas giras,
            méne, é tudo brincadeira, é a tradição
            académica em toda a sua pujança." 
            Por "tradição"
            entendem-se os argumentos que sustentam a "praxe" com
            base numa imaginária "herança cultural"
            ou num mais prosaico " sempre foi assim, sempre assim será".
            É falso. Nunca houve em Lisboa ou Porto nada que se lhe
            assemelhasse, e em Coimbra a "praxe" estava esquecida
            desde o final dos anos 60, vista como anacronismo paleolítico
            e identificada com as seitas mais retrógradas e fascistas
            dentro da Universidade; do mesmo modo, justificar da praxe pela
            "tradição" na Universidade da Beira Interior
            ou de Trás-os-Montes só pode ser sintoma de paralisia
            cerebral. E quem diz Universidade, diz Politécnico, diz
            secundário, que a grunhice praxista não é
            exclusiva das universidades, e já há putos do 7º
            ano com medo de ir para a escola por causa "dos grandes"... 
            Pode objectar-se que as tradições se inventam.
            Sim senhor. A criação de tradições
            até se pode revelar muito útil; por exemplo, desde
            1974 que tentamos criar uma tradição democrática
            (com sucesso relativo); e seria óptimo se se inventasse
            uma tradição de elevada exigência perante
            os serviços, universidades incluídas. Mas a ideia
            de tradição é, nesta acepção,
            uma mera bengala para justificar as pulhices que se possam cometer.
            Pelo facto de algo ser tradicional não é implícito
            que o aceitemos sem restrições. Assim, este tipo
            de argumento é apenas um meio (muito fraco) de evitar
            a discussão da utilidade e justificação
            da praxe. Mas nem é aqui que reside o problema. A praxe,
            em si, seria uma questão menor, se não fosse um
            reflexo do país em que vivemos, se não fosse o
            reflexo de outros problemas, esses sim, preocupantes. A praxe
            é um ritual que tem por objectivo impor a submissão
            à autoridade, mesmo que esta seja desprovida de qualquer
            legitimidade. É mais um instrumento de inserção
            social não questionada, que silenciosamente se vai impondo
            e adquirindo. É mais um instrumento subliminar na autoreprodução
            de uma sociedade conservadora e conformista.  
            A iniciação e integração
            dos caloiros pode ser feita de outras formas, mais próximas
            daquilo que os futuros doutores querem parecer socialmente: inteligentes,
            civilizados, divertidos, cultos, mundanos. As praxes, como têm
            sido feitas ultimamente, só revelam uma coisa: grunhice.
            E é pena desbaratar o orçamento do ensino para
            formar grunhos. 
            Chamo a vossa atenção para o artigo 21.º da
            Constituição - Direito de Resistência: "Todos
            têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os
            seus direitos, liberdade e garantias e de repelir pela força
            qualquer agressão, quando não seja possível
            recorrer à autoridade pública." Pensem nisso. 
             
            Para a redacção
            deste texto vali-me de alguns dos comentários sobre a
            praxe no artigo de Pedro Estevão "A 'praxe' ou a
            revolta dos medíocres", publicado no jornal on-line
            NON <http://www.zonanon.com>. Como vêem, a honestidade
            intelectual fica sempre bem.  
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