Jorge Bacelar

 

 

 

 


... e o Afeganistão aqui tão perto...

Já sei que estamos todos muito interessados na celulite galopante das raparigas do bigbráda; que estamos todos deveras preocupados com a lesão do Vítor Baía e com os problemas emocionais do Figo; que estamos apoquentadíssimos com a indefinição do Senhor Presidente da República relativamente a estar ou não estar presente na inauguração do Porto2001. Pois bem, este texto não refere nenhuma dessas questões transcendentes para o bem estar da nossa querida nação. No entanto, aqui também há sangue, sexo e violência. Portanto, dá p'ra ler.
Desde 1996, quando os Taliban tomaram conta do poder no Afeganistão, as regras mais infames da barbárie ganharam legitimidade por decreto. Um dos aspectos mais visíveis dessa barbárie liga-se às questões do papel da mulher - e especificamente à uniformização do seu comportamento. Assim, desde essa data, as mulheres tiveram de abandonar o mundo e enclausurar-se em casa. O trabalho é-lhes interdito, e mesmo para desempenharem as tarefas mais indiferenciadas - ir buscar água ou sachar a horta - só o podem fazer sob a vigilância e escolta de um Mahram (parente do sexo masculino - pai, irmão ou marido).
Aqui entra o sangue, o sexo e a violência: as mulheres foram obrigadas a retomar o uso da Burqa (aquela fatiota tipo saco de batatas que oculta integralmente as suas formas), e tem havido inúmeros casos de espancamentos - e inclusive mortes por lapidação - a mulheres que acidentalmente deixaram à vista um pé ou braço, ou que não levavam os olhos velados por uma rede. As hordas de machos, talvez frustrados pela ausência da simples alegria de ver uma mulher bonita na rua, descarregam essa frustração perseguindo e atormentando aquelas que tiverem a desdita de atravessar no seu caminho sozinhas ou acompanhadas por um macho que não tenha jurisdição sobre si. Mais: até 96, apesar da guerra com a União Soviética (ou, se calhar, por causa disso...), vivia-se no Afeganistão um clima de abertura aos novos tempos, estando abertas às mulheres algumas oportunidades de carreira profissional e realização pessoal. Agora, aquelas que foram professoras, médicas, juristas, enfermeiras, jornalistas, secretárias, motoristas, assistentes sociais, dirigentes políticas, estão encarceradas em casa - ao dispor do marido (que detém sobre a sua esposa as prerrogativas de vida e morte), sujeitas à denúncia e à brutalidade dos aiahtólahzinhos que vagueiam em matilhas pelas ruas a farejar sangue. Enforcamentos, tiros na nuca, linchamentos, são penas vulgares para o adultério. Flagelação na praça pública é o destino das mulheres que ousem pintar os olhos ou os lábios ou vestir roupas com cores garridas ('sexualmente provocantes', diz a sabedoria Taliban...). Amputação dos dedos se forem apanhadas com as unhas pintadas. Mesmo os homens decentes não escapam ao controle: se constar algo sobre a conduta duvidosa da sua esposa ou filha, terão de demonstrar publicamente quem manda lá em casa, sob pena de cair na suspeita colectiva, pagando um alto preço por tal.
Este retrocesso social não se limita às cenas de violência física: o índice de depressões, o número de mulheres enlouquecidas pelo terror, os suicídios, têm aumentado exponencialmente. Isto nada tem a ver com religião. É a barbárie, o obscurantismo em ascensão meteórica.
"Ah!, são mouros, são bárbaros; nós, europeus, nunca permitiríamos tal coisa!" Pois. Também houve muitos judeus nos idos de 1940 que não acreditavam nas histórias de Auschwitz - até à hora fatal em que chegaram aos 'chuveiros'. É só ver como (nós, europeus) nos comportamos na Alemanha, a espancar e queimar emigrantes turcos, moçambicanos e até portugueses. É só ver o que nós, europeus, fizemos na Bósnia, na Croácia, na Jugoslávia toda. Mesmo nesta santa terrinha de brandos costumes, já vamos tendo a nossa dose de violência racial, arbitrariedade policial, ciganos que se 'suicidam' nas esquadras, as nossas mulheres espancadas no recato do lar, as nossas filhas e as dos vizinhos violadas no mesmo recato, o silêncio ensurdecedor das vítimas ..............,
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Que fazer perante tudo isto? Que posso eu fazer? O mundo está assim mesmo! Eu até acho mal, mas... mas acho só podemos é continuar a preocupar-nos com a celulite das pobres raparigas do bigbráda, com o joelho do Vítor Baía, com a tristeza do Figo, com a inauguração do Porto2001. Isso sim, são coisas reais e estão ao nosso alcance. Se por acaso, um dia destes tirarmos os olhos da televisão e virmos as ruas patrulhadas por energúmenos a caçar pretos, ciganos e homossexuais, a polícia a entrar de rompante pela nossa casa dentro, amigos misteriosamente desaparecidos ou filhos a denunciar os pais por actividades subversivas, nada a estranhar, meu povo! É só o BigBrother em versão integral!
E as gajas do Afeganistão que se lixem. São todos uns bárbaros e só têm aquilo que merecem. Como nós. Também te(re)mos aquilo que merecemos.

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