ROSTO (2)

Edmundo Cordeiro

Segunda e última parte do texto "O Rosto", de Giorgio Agamben, MOYENS SANS FINS - NOTES SUR LA POLITIQUE, Bibliothèque Rivages, Paris, 1995 [pp.103-112]. Tradução de Edmundo Cordeiro e António Bento:

"(…) Nós chamamos tragi-comédia da aparência ao facto de o rosto pôr a descoberto somente na medida em que dissimule e dissimula na justa medida em que ele descobre. Deste modo, a aparência que o deveria revelar torna-se, para o homem, num semblante que o trai e no qual não pode já reconhecer-se. Precisamente por isso, porque o rosto é o lugar da verdade, ele é também, imediatamente, o lugar de uma simulação e de uma impropriedade irredutível. Isso não quer dizer que a aparência dissimule o que põe a descoberto, fazendo-o aparecer tal como ele não é: pelo contrário, o que o homem é não é outra coisa que não essa dissimulação e essa inquietude com a aparência. Porque o homem não é e não tem de ser uma essência ou natureza, nem um destino específico, a sua condição é a mais vazia e a mais insubstancial. O que se mantém oculto para ele não é qualquer coisa que esteja atrás da aparência, mas o simples facto de aparecer, o facto de nada mais ser senão um rosto. Trazer à aparência a própria aparência é a tarefa da política.

A verdade, o rosto, a exposição são hoje os objectos de uma guerra civil planetária cujo campo de batalha é a vida social, cujas tropas de assalto são os media e as vítimas todos os povos da terra. Políticos, mediacratas e publicitários deram-se conta do carácter não substancial do rosto e da comunidade que este abre e por isso procuram transformá-lo num miserável segredo que é necessário controlar a todo custo. O poder dos Estados já não se fundamenta hoje no monopólio do uso legítimo da violência (que de bom grado partilham com outras organizações soberanas - ONU, organizações terroristas), mas, em primeiro lugar, no controlo da aparência (da doxa). A constituição da política numa esfera autónoma anda de par com a separação do rosto num mundo do espectáculo em que a comunicação humana está separada de si mesma. E assim a exposição transforma-se num valor que se concentra nas imagens e nos media, na gestão do qual uma nova classe de burocratas se empenha ciosamente.

Se entre si os homens tivessem apenas de transmitir alguma coisa, jamais haveria, propriamente falando, política, mas unicamente trocas e conflitos, sinais e respostas; mas, uma vez que entre si os homens devem acima de tudo transmitir uma pura comunicabilidade (isto é, a linguagem), a política aparece assim como o vazio comunicativo onde o rosto humano se solta enquanto tal. Políticos e mediacratas procuram assegurar o controlo desse espaço vazio, mantendo-o isolado numa esfera que lhe garanta o carácter indeterminável, fazendo com que a própria comunicabilidade se não manifeste. Isto significa que a análise marxiana deve ser completada, uma vez que o capitalismo (ou qualquer outro nome que queiramos dar ao processo que domina hoje a história mundial) não estava apenas destinado a expropriar a actividade produtiva, mas também, e sobretudo, a própria linguagem, a própria natureza comunicativa do homem.

Dado que não é mais do que pura comunicabilidade, todo o rosto humano, mesmo o mais nobre e o mais belo, está sempre suspenso sobre um abismo. É por essa razão que por vezes os rostos mais delicados e plenos de graça parecem bruscamente desfigurar-se, deixando aparecer o fundo informe que os espreita. Mas esse fundo amorfo é a própria abertura, a própria comunicabilidade, na medida em que estas se pressupõem a si mesmas como coisas. Só aquele rosto que assume o abismo da sua própria comunicabilidade e é capaz de a expor sem receio e sem complacência, só esse está indemne.

Por conseguinte, cada rosto contrai-se numa expressão, petrifica-se num carácter e, dessa maneira, avança e penetra em si mesmo. O carácter é o esgar do rosto no momento em que - sendo apenas comunicabilidade - se apercebe de que nada há a expressar e silenciosamente se dobra sobre si mesmo na sua própria identidade muda. O carácter é a reticência constitutiva do homem na linguagem. Mas o que aqui devemos compreender é apenas uma não-latência, uma pura visibilidade: tão só uma face. E o rosto não é qualquer coisa que transcenda a face: é a exposição da face na sua nudez, vitória sobre o carácter-fala.

Uma vez que o homem é e não deve ser senão rosto, tudo para ele se divide em próprio e impróprio, verdadeiro e falso, possível e real. Toda a aparência que o revela torna-se-lhe imprópria e factícia, e vota-o à tarefa de se apropriar da verdade. Mas esta não é uma coisa de que nos possamos apoderar, e não tem, por relação com a aparência e com o impróprio, um outro objecto: a verdade é somente a apropriação da aparência, a sua exposição. Em contrapartida, a política totalitária moderna, é vontade de auto-apropriação total, na qual, ou o impróprio (como nas democracias industriais avançadas) impõe sempre a sua própria dominação por uma irreprimível vontade de falsificação e de consumo, ou então (como nos Estados a que chamamos totalitários) o próprio pretende excluir de si toda a impropriedade. Nos dois casos, nesta grotesca falsificação do rosto, perde-se a única possibilidade verdadeiramente humana: a possibilidade de se apropriar da impropriedade enquanto tal, de expor no rosto a sua própria simples impropriedade, de caminhar obscuramente para a sua luz.

O rosto humano reproduz na sua própria estrutura a dualidade próprio e impróprio, comunicação e comunicabilidade, potência e acto que o constitui. O rosto é formado por um fundo passivo donde se libertam traços activos expressivos. "Tal como a estrela reflecte os seus elementos nos dois triângulos sobrepostos e a coesão dos elementos numa via, também os órgãos do rosto se dividem em duas camadas. Pois os pontos vitais do rosto são aqueles com que entra em conexão com o mundo exterior, quer enquanto activo, quer enquanto receptivo. Os órgãos receptivos compõem a camada de fundo, por assim dizer, as pedras de construção de que o rosto é feito: fronte e face. Às faces pertencem as orelhas, à fronte o nariz. Orelhas e nariz são órgãos de pura recepção". Por cima deste primeiro triângulo elementar, formado pelo centro da fronte como ponto dominante de todo o rosto e pelos pontos medianos das faces, estende-se um segundo triângulo que é composto pelos órgãos cujo jogo expressivo anima a máscara rígida do primeiro: olhos e boca." Na publicidade e na pornografia (sociedade de consumo), são os olhos e a boca que estão em primeiro plano; no Estados totalitários (burocracia), é o fundo passivo (imagens inexpressivas dos tiranos de gabinete) que domina. Mas só o jogo recíproco dos dois planos é a vida do rosto.

Da raiz Indo-europeia que significa "um" derivam em Latim duas formas: "similis", que exprime a semelhança, e "simul", que significa "ao mesmo tempo". Por conseguinte, ao lado de similitudo (semelhança), temos simultas, o facto de se estar junto (donde, também, "rivalidade, inimizade"), e, ao lado de "similare" (assemelhar), temos "simulare" (copiar, imitar, donde igualmente fingir, simular).

O rosto não é simulacro, no sentido de qualquer coisa que dissimula e mascara a verdade: ele é a "simultas", o estar-junto das múltiplas faces que o constituem, sem que alguma delas seja mais verdadeira que as outras. Captar a verdade do rosto significa apreender não a semelhança, mas a simultaneidade das faces, a potência inquieta que as mantém juntas e as une. Deste modo, o rosto de Deus é a "simultas" dos rostos humanos, "nossa efígie" que Dante via na "viva luz" do paraíso.

O meu rosto é o que de mim está de fora: um ponto de indiferença por relação com todas as minhas propriedades, por relação ao que é próprio e ao que é comum, ao que é interior e ao que é exterior. No rosto, existo com todas as minhas propriedades (moreno, grande, pálido, orgulhoso, emotivo), mas sem que alguma delas me identifique ou me pertença essencialmente. O rosto é o umbral de des-propriação e de des-identificação de todos os modos e de todas as qualidades, no qual estas se tornam puramente comunicáveis. E é apenas onde eu encontro um rosto que o que está de fora me acontece, que eu reconheço uma exterioridade.

Sede apenas o vosso rosto. Ide para o umbral. Não fiqueis senhores das vossas propriedades ou das vossas faculdades, não vos fiqueis aquém delas, mas ide com elas, nelas, para além delas. Para o umbral, em êxtase."

[FIM]

Clique aqui para regressar à primeira página