AFECÇÃO


Edmundo Cordeiro

A AFECÇÃO é o sentimento ou a sensação interna aos "centros de acção" em torno dos quais se desenha a percepção.

Num primeiro sistema, temos um universo de imagens sem centro ou centros identificáveis - é a matéria em variação infinita, onde tudo age e reage sobre tudo, e onde tudo é em si mesmo acção e reacção.

Mas, num segundo sistema, eis que se formam "centros de indeterminação" nesse universo. O que define esses centros é uma separação, por mais ínfima que seja, entre a acção e a reacção. É esta separação, este intervalo entre a acção e a reacção, que constitui as imagens ou matérias vivas. Esses centros de indeterminação, diz Bergson em MATIÈRE ET MÉMOIRE, "deixar-se-ão atravessar, de certo modo, por aquelas de entre as acções exteriores que lhes são indiferentes; as outras, isoladas, tornar-se-ão "percepções" por seu próprio isolamento." Essas percepções vão-se destacar, diz ele algumas linhas antes, como um "quadro". Para que esse "quadro" se destaque, forçoso é que as reacções executadas não sejam simples prolongamento das acções sofridas: entre a acção sofrida e a acção executada vai haver um intervalo. (Há matéria viva, por conseguinte, há formação de um segundo sistema de imagens, quando a reacção não é uma mera consequência da acção sofrida, quando há um "instrumento de análise com relação ao movimento recolhido e instrumento de selecção com relação ao movimento executado.")

As imagens ou centros de indeterminação têm, genericamente, no menor grau de complexidade, uma face receptiva (que recolhe os movimentos, que sofre a acção) e uma face activa (que executa ou reflecte os movimentos ou acções). Alguns destes movimentos recebidos, algumas destas acções sofridas, são absorvidos, quer dizer, são sentidos interiormente: é isso a AFECÇÃO.

Se tormarmos um caso limite de afecção, a DOR física, vemos que não basta aumentar a percepção de uma agulha que se aproxima da nossa pele para sentir DOR, vemos que a DOR se dá exactamente quando a agulha toca na pele, nesse "momento preciso". Há um "momento preciso", diz Bergson, em que a DOR intervém. Isso altera radicalmente as coisas, quer dizer, isso altera radicalmente a nossa percepção: passa-se da antecipação de uma acção (percepção) para uma acção real.

Quando é que se dá esse "momento preciso" em que se "acresecenta algo de novo"? - "quando a porção [parte] interessada do organismo, em vez de acolher a excitação, a repele." Por conseguinte, quando a face receptiva se volve ela própria em face activa. Na percepção, a excitação é recolhida e reflectida, na afecção, a excitação é repelida e absorvida.

A DOR "nasce" de dentro, nasce da luta contra o que vem de fora. Os corpos não reflectem somente as acções das imagens que os rodeiam (percepção), mas lutam também e absorvem essas acções. Daí esta equação-metáfora de Bergson: "se a percepção mede o poder reflector do corpo, a afecção mede o seu poder absorvente."

Vês mais quanto mais és capaz de reflectir, sentes mais quanto mais és capaz de absorver.