José Geraldes

O factor C

Daniel Sampaio, conhecido médico psiquiatra e autor de livros sobre os adolescentes, conta a conversa havida com um "chauffer" de táxi. A certa altura, vieram à baila os empregos para jovens. O "chauffer" queixava-se da dificuldade em arranjar trabalho para um dos filhos. E remata com uma interpelação a Daniel Sampaio: - "Sabe, sem o factor C não há hipótese de emprego em Portugal". Estupefacto, o psiquiatra pergunta-lhe: - "Mas, o que é o factor C?" Resposta imediata do "chauffer": "a cunha, meu senhor, pois claro".
A conversa parece uma anedota mas revela uma situação quotidiana no País. A cunha tornou-se uma instituição nacional. Se um jovem procura um emprego e, caso não tenha cunha a apoiá-lo, as dificuldades crescem para a obtenção de um trabalho. E o problema é que, quando há concursos, as cunhas amontoam-se nas secretárias dos membros do júri.
O hábito quase já faz parte da cultura portuguesa e assume tais dimensões que não há pedido de emprego, sem cunha. Inclusive nas provas de concursos chega-se a mudar uma décima na classificação para se admitir quem tem a cunha mais forte. E casos há que vão mesmo à impugnação das provas e julgados em tribunal.
Não se admite o candidato pelo mérito mas pelo favor do padrinho. E depois surge o princípio de Peter. Os incompetentes apoderam-se dos empregos para os quais não estavam preparados.
Se fosse possível em Portugal fazer uma auditoria a repartições públicas e organismos do Estado e empresas, com base no princípio de Peter ou seja, na incompetência, grandes surpresas surgiriam à luz do dia.
Afinal já no séc. XIX - imagine-se - houve exemplos, em Portugal, de domínio da cunha sobre o mérito.
O caso que se passou com o escritor Eça de Queiroz é paradigmático. Em 1859, Fontes Pereira de Melo assinou uma lei que obrigava à admissão dos funcionários públicos só por concurso. Em 1870, Eça de Queiroz presta provas para Cônsul, no Brasil. O júri era composto por altas personalidades do tempo. O escritor é classificado em primeiro lugar.
Mas quem ocupa a função? Eça de Queiroz? Não. Mas outro candidato, Manuel Saldanha da Gama. E porquê? Por causa de uma valente cunha.
No tempo do Estado Novo, sabia-se que, sem cunha, não era possível um emprego no funcionalismo público. A seguir ao 25 de Abril e contrariamente ao seu espírito, a cunha adquiriu foros de cidade. Como um polvo, invadiu toda a sociedade. E a expressão "jobs for the boys" entrou no vocabulário usual.
Desde 1974, nenhum governo pode dizer que tem as mãos limpas a este respeito. Cada poder, vermelho, laranja ou rosa, admitiu os seus "boys" no momento oportuno. Umas vezes de forma descarada, outras vezes com pézinhos de lã.
É sabido que há ministérios governamentais transformados em fortalezas de funcionários admitidos por cunha: partido político, padrinho, tráfico de influências. E, no meio de tudo isto, uma hipocrisia de bradar aos céus. E o não cumprimento de leis da República.
Haverá uma solução para a pecha da Cunha? Difícil é o problema. Almada Negreiros aponta um caminho: "A nossa querida terra está cheia de manhosos, de manhosos e de mais manhosos. E numa terra de manhosos não se pode chegar senão a falsos prestígios(...) Há, sim senhor, um Portugal sério, um Portugal que trabalha, que estuda, curioso atento e honrado".
Pois é. Honra e seriedade, o que faz falta.