Por Por Carla Loureiro e Marisa Miranda


À noite, o serviço de urgências é o mais movimentado do Hospital Pêro da Covilhã

"Coloquei panos para estancar o sangue e depois chamei o 112 que me trouxe para aqui". De uma conversa entre amigos com algumas cervejas à mistura, acontece a história de Luís Manuel Ferreira. Natural de Belmonte, este utente viu-se envolvido numa rixa familiar. "O paciente tem uma ferida penetrante na axila, mas não atingiu os pulmões. É uma ferida simples, vamos só suturar e medicá-lo", diagnostica a médica-cirurgiã, Adelaide Campos.
No início do turno da noite, os corredores do Serviço de Urgências do Centro Hospitalar Cova da Beira (CHCB) são o local mais movimentado. No final do mês de Abril, a direcção da Unidade Hospitalar da Cova da Beira contabilizou uma média de atendimento mensal de oito mil e 200 utentes na urgência, o que significa que oito em cada dez pessoas, por ano, recorrem à urgência.
Segundo Miguel Castelo Branco, director do Serviço de Urgências do Centro Hospitalar Cova da Beira, devido às dificuldades que todos os dias as pessoas encontram no acesso aos médicos, "o serviço de urgências acaba por funcionar como a porta aberta do sistema onde é fácil ser atendido". Para este profissional da saúde, o serviço de urgências devia apenas funcionar como "unidade de atendimento de pessoas acometidas por doenças que requerem a intervenção médica num curto espaço de tempo da qual depende a vida ou a qualidade de vida de um doente". Esta opinião é partilhada por Maria Eugénia André, médica interna há 13 anos. De serviço na noite de 29 para 30 de Maio, esta médica, defende "que as pessoas recorrem às urgências por tudo e por nada". Nestas situações, o congestionamento do serviço de urgências é inevitável. As filas aumentam e o tempo de espera também, o que leva as pessoas ao desespero."Às vezes os doentes têm razão quando se queixam do tempo de espera, mas também há situações em que por mais que se explique eles não percebem. Querem é ver a sua situação resolvida, olham apenas para o seu umbigo", refere Eugénia André que trabalha há quatro meses nas urgências do Centro Hospitalar Cova da Beira.
O aumento crescente dos utentes neste hospital, preocupa toda a equipa de médicos e enfermeiros. A solução é apontada por Miguel Castelo Branco: "É importante arrumar a casa, criar novos níveis de confiança da população em todo o sistema de saúde".
Neste momento, o Ministério da Saúde prevê no seu programa de actividades, promover a reorganização do serviço de urgência e emergência. "O sistema de saúde tem que ser reordenado, no sentido dos problemas serem resolvidos de forma adequada. Portanto, se é um caso que precisa de hospital e de urgência é para lá que deve ir. Se é uma situação que precisa de médico e não é uma urgência hospitalar, deve recorrer às consultas externas e ao Centro de Saúde", explica Miguel Castelo Branco.
A carência de pessoal médico leva à acumulação de horas extraordinárias, de modo a que seja possível assegurar os turnos.

Idosos abandonados no Hospital

Margarida (nome fictício), não fala. Ninguém sabe o seu nome. Os médicos suspeitam de uma trombose que lhe afectou a fala. Dois bombeiros trouxeram-na da unidade hospitalar do Fundão. Médicos e enfermeiros conversam entre si e dizem que "a filha a abandonou". Sem saberem o historial clínico de Margarida, os médicos nada podem fazer, a não ser mandá-la de volta para o Hospital do Fundão. Nesta noite, a maior parte do tempo é passado a tratar das doenças da idade, como os problemas cerebrovasculares. Nos corredores vêem-se idosos em macas encostadas às paredes brancas do Serviço de Urgências.
Abandonar idosos nas urgências é prática corrente. O Centro Hospitalar Cova da Beira (CHCB) não escapa à triste estatística que tem vindo a aumentar. Muitas vezes são casos que não justificam internamento. Nos hospitais das grandes cidades, estes doentes seriam rapidamente enviados para casa. Mas nesta unidade hospitalar ninguém tem coragem de mandar um idoso de volta, sem que antes a sua situação social esteja resolvida. É o sentido de humanização que se ganha quando se vem para um hospital do Interior.
Há quem recorra aos serviços de urgências porque se sente sozinho. "Basta uma voz amiga e um carinho para ajudar bastante no tratamento, mas o bom senso é indispensável", defende Francisco Brito, médico de família de serviço. "O doente é um ser humano, seja em que circunstâncias for", acrescenta. Para Maria Eugénia André, a urgência ou não dos problemas é um factor decisivo na forma como se devem tratar os doentes. "Nas situações não urgentes devemos ter uma atitude mais carinhosa. Nas situações de emergência, o importante é actuarmos logo". Todavia, as coisas nem sempre se passam desta maneira. "Por vezes não nos apercebemos que há situações em que só uma palavra basta para resolver o problema do doente", afirma a profissional.
Depois das três da manhã, no serviço de urgências do Centro Hospitalar Cova da Beira, segue-se um período de acalmia que contrastava com a confusão de horas antes. A televisão passa imagens de televendas numa sala que está vazia. São seis da manhã. Todo o hospital parece dormir. Daqui a algumas horas, as caras cansadas da noite são substituídas por outras não menos exaustas. "Na prática sempre que os médicos fazem horas extraordinárias têm direito a descanso, mas como os especialistas nos hospitais são muito poucos somos obrigados a acumular horas de trabalho", desabafa Eugénia André, médica interna, que divide o seu tempo entre as urgências e as consultas externas.

Classe médica envelhecida

"Ser médico é lidar com a vida humana, com a saúde e a doença. É ser útil aos outros o mais humanamente possível, usando os conhecimentos académicos que se adquiriram", define Francisco Brito. De acordo com um estudo da Direcção Geral de Saúde, dentro de cinco anos, 41 por cento dos médicos dos quadros do Estado estarão em idade de reforma. A situação assume contornos mais dramáticos no caso dos médicos de Clínica Geral. Em 2017, apenas 2079 estarão nos hospitais dos actuais 8026 médicos. Nessa altura cerca de 85 por cento dos actuais clínicos gerais já estarão reformados.
O Ministério da Saúde revela que a classe médica está a envelhecer, sendo difícil a sua renovação. Para isto contribuiu a redução do "numerus clausus nas Faculdades de Medicina, com a entrada em vigor em 1977. Aos 50 anos, os médicos são dispensados das urgências nocturnas e aos 55 de todas as urgências. Para tentar resolver a questão, o Ministério da Saúde colocou já em andamento um conjunto de medidas. A criação de duas novas Faculdades de Medicina - Covilhã e Braga - entrarão em funcionamento em Outubro deste ano. Simultaneamente, o aumento entre 30 a 35 por cento do "numerus clausus", nos cursos de Medicina, como mais uma forma de resolver o problema.
No caso dos enfermeiros, a questão assume contornos de alguma gravidade. Dentro de 5 anos, as maternidades correm o risco de não ter nos seus quadros especialistas em partos, saúde materna e obstetrícia. No nosso País, segundo a Ordem dos Enfermeiros, existem 1528 enfermeiros desta especialidade, mas 627 têm mais de 50 anos, devendo passar à reforma até 2006. A agravar a situação está o facto de não se formarem especialistas nesta área há mais de dois anos.
No Centro Hospitalar Cova da Beira, o cenário não é muito diferente. O número de enfermeiros por turno não é suficiente. "É uma guerra já antiga que temos com a direcção de enfermagem pois queremos aumentar o número de enfermeiros por turno", afirma Rui Alves, olhando insistentemente para o relógio, à espera que a meia-noite chegue.
"Há uma falta de médicos e enfermeiros a nível geral, mas no Interior temos mais dificuldades", explica Maria Eugénia André, médica interna de serviço. Segundo Miguel Castelo Branco, o principal problema do Interior reside na capacidade de atrair pessoas. "É importante que a formação dos futuros médicos passe pelo nosso hospital para que estes possam criar laços com a cidade".
Para Francisco Brito, no sistema de saúde português ainda existem "muitas lacunas e deficiências". "Há muito para melhorar e para tal é preciso coragem política. Estamos longe do ideal, há listas de espera e o acesso às consultas ainda é difícil", acrescenta.
Se não houver alterações profundas no sector da Saúde, a situação nos próximos cinco anos poderá ser de ruptura.

 

 



 
Histórias de Crianças

Nas Urgências Pediátricas o ambiente é mais calmo. As figurinhas de palhaços e bonecos coloridos contrastam com o cenário das Urgências Gerais. Ricardo Costa, médico pediatra de serviço nesta noite, trabalha há dois anos no Centro Hospitalar Cova da Beira e exerce medicina há 11. Para este médico, que deixou a carreira de médico de cuidados intensivos, no Porto, "tratar" de crianças é estimulante. "Há uma relação muito forte entre nós, os bebés e os pais". Com um brilho nos olhos, relembra uma paciente muito especial, a sua primeira bebé de 600 gramas. "Ela agora tem sete anos e é uma felicidade enorme quando a encontro no Porto", afirma Ricardo Costa.
Nos corredores sossegados, ouve-se de vez em quando o choro de um bebé e o barulho do ventilador. Rui Nuno, oito anos, sofre de bronquite asmática. "Este mês tem sido pior", diz a mãe. Em média, Rui Nuno, passa entre uma a duas horas a receber oxigénio. A mãe, Celina Pais, já está habituada aos hospitais, pois grande parte da sua vida tem sido aí passada. "O meu marido é transplantado hepático, portanto já conheço os cantos à casa", sorri.
Pedro Rato, funcionário administrativo, trabalha na pediatria e confessa que o envolvimento com as pessoas, neste caso com as crianças, é natural. "Está-se sempre envolvido, mesmo que não se queira". O caso "mais triste" que lhe apareceu "foi o de uma criança, que no ano passado, ficou debaixo de um tractor", lembra Pedro Rato, emocionado.
Enquanto que nas grandes cidades são os acidentes de viação que roubam a vida a muitas crianças, no Interior, os culpados são os acidentes agrícolas.
Abertas das 8 da manhã às 24 horas, as urgências pediátricas passam a ser assistidas, depois da meia noite, nas das urgências gerais. A nível nacional, o pico de maior afluência nas urgências pediátricas é das 18 às 22 horas.