NITIDEZ


Edmundo Cordeiro


Tenho a nítida percepção de que os idiotas governam o mundo. Não só em geral, ou planetariamente. Mas sobretudo na nossa rua, à nossa mesa, mesmo nas escadas de serviço. São sempre os idiotas que se safam, os que não têm vergonha nem do conforto nem do sucesso. Mas não se pode dizer, porém, que o que falta é vergonha. Pois a vergonha é um princípio impessoal que define a capacidade de sentir o intolerável, não é qualquer coisa de pessoal, não define uma inibição particular, não é vergonha diante da lei. "A vergonha tem muitos motivos contraditórios." [Gilles Deleuze, "La honte et la gloire: T.E. Lawrence"] A vergonha como potência, capacidade de sentir o que há de intolerável e pelo qual nos sentimos responsáveis. Motivo de Primo Levi e de muitos outros. Responsáveis não PELAS vítimas, mas DIANTE das vítimas. Não se pode subsumir a vergonha na culpabilidade.

Giorgio Agamben escreveu diversas vezes sobre a vergonha, apanhando no caminho algumas setas de Kafka, Levinas, Heidegger, como em IDEIA DA PROSA e em O QUE RESTA DE AUSCHWITZ. Nesta última obra Agamben mostra que a vergonha não é culpabilidade, mas AÏDOS, "qualquer coisa como o facto de assistir ao seu próprio ser-visto, de ser tomado como testemunha pelo que se olha (…) [a vergonha] não é senão o sentimento fundamental de ser sujeito, nos dois sentidos - em aparência, pelo menos - opostos deste termo: ser sujeitado e ser soberano. Ela é o que advém na absoluta concomitância entre uma subjectivação e uma dessubjectivação, entre uma perda de si e uma MAITRISE de si, entre uma servidão e uma soberania."

Vergonha como potência de agir, mesmo que, no limite, possa ser desencadeada numa situação em que se sente uma impotência radical, ou então pelos motivos aparentemente mais banais - ter vergonha ali mesmo onde muitos se comprazem. "A vergonha de ser um homem: haverá melhor razão para escrever?" [Gilles Deleuze, "La littérature et la vie"] A vergonha de ser um homem, a vergonha por se ter entrado, sem saída, nos mais vergonhosos "compromissos" ou por termos quotidianamente de entrar em situações de falsidade suportadas por compromissos hipócritas, isso é uma das razões para se escrever e para fazer filosofia. A vergonha de ser homem igualmente como condição da arte, como condição da escrita, não para se render diante do abominável ou do poderoso, mas, justamente, para não nos safarmos como os idiotas nas escadas de serviço.