NO REINO DO EGO


Nuno Miguel Augusto



A relação com os líderes constituiu desde sempre uma das mais intrigáveis questões da sociologia, ao assentar em bases mais subjectivas, como por exemplo o carisma ou mesmo a tradição. Weber considerou que, dada a tendência racionalizadora associada à modernização, estes elementos de legitimação perderiam importância. No entanto, quando olhamos o modo como local e regionalmente se estruturam as relações políticas, este cenário altera-se. Em muitos casos a relação é bem mais enraizada nos elementos pessoais que nos elementos organizativos e institucionais, como os próprios partidos políticos. A relação entre elites e massas torna-se algo freudiana, produzindo-se uma "atracção erótica" entre o dominado e o dominante.
As eleições autárquicas converteram-se definitivamente num reino do ego. A primeira pessoa do verbo é disparada à mesma velocidade nas mesas do café que nos outdoors. Os projectos políticos pouco se vêem, as novas ideias para a cidade muito menos. É o impression management de que nos fala Goffman que mais importa num dos momentos mais importantes do processo político e democrático local - o fim de um mandato e o início de outro. Perde-se, deste modo, a oportunidade para produzir uma discussão mais ampla que privilegiasse as ideias e os projectos em detrimento da avaliação curricular ou dos esforços finais de valorização da imagem. Mesmo que não conheçamos os potenciais representantes, torna-se inevitável fixar a sua imagem em cada curva da cidade, nos postes e nos sinais vermelhos. A condição fundamental é, para todos, a sua imagem se tornar familiar dos eleitores, mesmo que os seus projectos não o sejam.
O raciocínio pode parecer óbvio - à medida que nos aproximamos de dimensões mais locais de poder, amplia-se a pessoalização da representação política - mas as consequências são bem mais profundas. Essa pessoalização leva a uma associação quase mecânica entre líder e autarquia. Dissociá-los é praticamente impossível. O mesmo acontece nos níveis informais em que a confiança no líder se demarca claramente face a outros elementos de legitimação como, por exemplo, os próprios projectos. Trata-se de uma relação de confiança pessoal em que aspectos como a simpatia partidária ou a identidade com um projecto social e político perdem claramente importância.
A avaliação "curricular" é extremamente importante e enraíza-se na história em forma de memória. A avaliação das propostas enraíza-se, não nos projectos políticos, mas no feito e por fazer, isto é, na execução técnica num período de quatro anos. Esta é outra condição para a corrida política. As consequências deste tipo de avaliação têm-se reflectido, quer nos media, quer na comunidade política. A agenda é preenchida com um conjunto de elementos relativos à acção dos líderes e da "sua" equipa, como jantares, comícios, inaugurações, etc.
A discussão na praça pública dos diferentes programas para a cidade constituiria uma mais-valia para uma maior democratização dos sistemas políticos locais e uma importante fonte de informação e energia políticas. Idealmente, o processo de campanha eleitoral deveria funcionar como um momento de avaliação de um dado projecto de desenvolvimento, assim como um instrumento auscultador de novas expectativas. Na prática, o processo reveste-se claramente mais de aspectos de atracção da simpatia política do maior número de eleitores possível.
Os processos eleitorais continuam centrados no palácio e não na praça pública. É entre os líderes que se estrutura o momento que antecede a eleição dos representantes para as autarquias. Face à subvalorização dos programas políticos e à dificuldade em torná-los motes da discussão pública, ficamos toldados pelos conflitos do palácio e não por uma visão e um projecto de cidade. Confunde-se muitas vezes actores locais com receptores de campanha. Talvez por tudo isto, quando esta exigível passividade se altera e a discussão emerge da praça pública, se procure automaticamente contextualizar partidariamente as posições e se erga mecanicamente a bandeira da honra e das virtudes pessoais. No reino do ego confunde-se uma opinião ou uma análise com tentativas de protagonismo ou com ataques pessoais, pois tornou-se inconcebível uma participação que não a institucional(izada).
A opinião, a investigação, a crítica transformam-se rapidamente em armas de arremesso partidárias. Imaginam-se comunidades científicas inteiras a teclar textos ao som dos clarins partidários. Se a Dona Rita de Arrabaldes de Baixo aproveitar a presença do TV Regiões para falar da casa em ruínas, foi a oposição que lho sussurrou ao ouvido, etc... A passividade é, nos contextos actuais, uma condição importante do "regular" funcionamento das campanhas eleitorais. No fundo veja, mas não seja visto, pois neste momento impera o discurso institucional e partidário e toda e qualquer discussão pública (por mais legitimidade democrática ou importância local que possa ter) é automaticamente sugada para o seu interior. Neste contexto, nada faz sentido fora da esfera do conflito eleitoral entre os líderes, fechando-se deste modo a oportunidade para estruturar um projecto mais vasto de discussão pública.