Catarina Moura

A minha bisavó, o Bob Dylan e o Urbi


[ Vou falar-vos da minha bisavó. Quando terminar talvez percebam porquê. ]

A minha bisavó foi a primeira pessoa que perdi. Na segunda-feira, 7 de Fevereiro, nascia o Urbi @ Orbi - no sábado, 5 de Fevereiro, morria a minha bisavó. Estava a preparar a primeira edição do jornal quando a minha mãe telefona e dá a notícia. Estava a preparar uma nova fase da minha vida quando a minha mãe telefona e me fala de morte. Teria hoje 100 anos, tal como o Urbi já tem 100 edições. Mas mesmo que estivesse viva, este Urbi que todas as terças-feiras damos à cidade e ao mundo passar-lhe-ía ao lado como aconteceu com tantas outras coisas. Para a minha bisavó, que se chamava Amélia e não fez 100 anos, a história que interessava era a sua e a dos que conhecia na pequena vila em que viveu, rodeada de um imenso bosque de pinheiro manso, quase toda a sua vida. A minha bisavó Amélia era uma senhora pequenina que o tempo embrulhou em papel amachucado e amarelecido. Tinha o cabelo comprido, que uma trança perfeita escondia na nuca, e uns olhos escuros e redondos, cheios de um brilho lúcido que só morreu com ela. Cheios das muitas memórias que partilhava comigo à soleira da porta nas tardes de verão que passava ao seu lado. Tenho a infância cheia do cheiro daquela casa. Verões de pinheiro e manjerico. Invernos de café de cevada e pão de ló. Cheiros a que regresso sem esforço.
Nasceu na monarquia e deixava a infância quando, já sem rei, foi viver para a vila onde ficou para sempre. Quando o mundo tremia sob a primeira Guerra Mundial, a minha bisavó casava com um bisavô que nunca conheci e ela nunca esqueceu, magoada pela partida prematura de um grande amor. Se lhe falássemos na Segunda Guerra encolheria os ombros. Dessa altura só sabe que viu nascer, crescer e casar cinco de seis filhos. O mais novo ficou até ao fim, para sempre o seu frágil e adoentado bebé. Viveu para ele. Só queria viver enquanto ele vivesse. E quando ele partiu foi atrás dele, para continuar a protegê-lo.
A minha bisavó não soube nada das letras do mundo. As contas fazia-as de cabeça, de acordo com as necessidades da casa e das vidas que geria. Das notícias só lhe interessavam as da família, dos amigos e dos conhecidos. Os tempos mudaram, as saias subiram, mas as dela ficaram sempre um palmo abaixo do joelho. A uma geração que cantava "For the times, they are a-changin" ela perguntaria "Bob quê??" e continuaria calmamente a viver a sua vida cheia dos dramas e das alegrias de uma mulher comum, com a fragilidade e a força da mulher comum, mas a meu ver com menos defeitos e mais qualidades humanas que a mulher comum.
Da modernidade conheceu a luz eléctrica, a água canalizada e, já depois dos 70, o frigorífico, a cuja magia se rendeu apaixonadamente. Não quis saber de cinema ou televisão. Diziam-lhe que haviam de fazer um programa sobre ela quando fizesse 100 anos. Sorria, doce, já sem dentes, e encolhia os ombros. A televisão que ela nunca quis iria bater-lhe à porta para depois, em cinco minutos, contar a história de uma vida e revelar o fantástico segredo da longevidade ao tentar saber o que comia e bebia a secular e enrugada senhora quase surda. Depois saíam satisfeitos e ela lá ficava, alheia a esse mundo imenso paralelo ao seu.
A minha bisavó teria agora um século todo dela, muito diferente do século dos outros. Não viu um único computador. Nunca lhe falei da Internet. Queria ter-lhe dito que trabalhava num jornal on-line. Queria ter-lhe explicado o que é a World Wide Web. Queria ter-lhe mostrado o meu mundo com a mesma ternura com que ela me mostrou o dela. Queria ter ainda aqueles olhos escuros e cheios de tempo a acariciar-me o rosto. Queria que a mudança dos tempos não roubasse do meu tempo as pessoas que amo. "The line it is drawn | The curse it is cast | The slow one now | Will later be fast | As the present now | Will later be past | The order is | Rapidly fadin' | And the first one now | Will later be last | For the times they are a-changin' "…

Parabéns Urbi @ Orbi. Muda com os tempos sem deixares de ser fiel aos princípios que te definem.