Nuno Miguel Augusto

Legislativas a duas vozes



Não restam grandes dúvidas que as próximas eleições legislativas representarão um importante barómetro das atitudes políticas dos portugueses, mas serão igualmente importantes como auscultadoras do funcionamento interno da máquina democrática. Pelo que o período actual deixa antever, a bipolarização dos resultados poderá ser extrema e revelar em definitivo um hiato entre a clivagem de esquerda (representada pelo PS) e a clivagem de direita (representada pelo PSD). Se tivermos em conta a exposição interna que o PP e a CDU têm conhecido e o crescimento da incerteza sobre os resultados finais, o cenário tenderá certamente para uma das maiores bipolarizações já verificadas em Portugal. A possível contracção da atracção partidária tem obviamente como consequência a redução do pluralismo ou mesmo a supressão dos partidos menos representados, como poderá ser o caso do BE. Se puxarmos os cobertores para o centro ao dormirmos, obviamente que fazemos subir as franjas, ou mesmo descobrir o(a) parceiro(a).
As consequências para os sistemas políticos da presença desta bipolarização são conhecidas e coincidem frequentemente (como no caso português) com o crescimento da abstenção eleitoral. Contrariamente à dialética conflito-integração (divisão-associação-organização) que marcaria idealmente a representação das clivagens sociais, apresenta-se-nos um cenário de mera atracção da chamada simpatia partidária. São os partidos quem define a agenda política e são eles quem produz os quadros de ideias, na forma de propostas - nós pensaremos por si, você opta - ao bom estilo do voluntarismo de acção funcionalista. Somos voluntários face a um leque de escolhas, não face a um leque de opções políticas emancipadas e democraticamente produzidas.
Na análise das questões políticas e em particular da relação de representação, referem-se frequentemente os chamados catch all people's parties, isto é, os partidos apanha-tudo. Caracterizam-se pelo seu discurso vago e técnico procurando, dentro do possível, produzir simpatia junto do maior número possível de clivagens sociais e ideológicas. Tal não significa, no entanto, a presença de uma crise no interior das ideologias, mas antes uma perspectivação relativista das ideias, como diria Karl Mannheim ( que sustenta que o marxismo é a ideologia do Século XIX). Continuamos encerrados no interior de uma dicotomia ideológica histórica e socialmente incoerente, cuja consequência, entre outras, é a própria bipolarização partidária.
Os partidos do chamado bloco-central (central porque maioritário), chamaram a si a dicotomia esquerda direita, isto numa sociedade crescentemente fragmentada e desmultiplicadora das clivagens sociais. O modelo ideológico proveniente da sociedade industrial e que reproduzia a dicotomia classista mantém-se, ainda que a sua coerência do ponto de vista social e político sejam amplamente discutíveis. O PS passa a representar uma esquerda assente nos direitos sociais, na intervenção social do Estado e na parceria; o PSD sustenta fundamentalmente os princípios neo-liberais - a liderança do mercado, a iniciativa privada e um papel mais regulador que interventor por parte do Estado. O primeiro, vê-se a braços com a necessidade de crescimento da acumulação para a sustentação financeira do Estado Providência, o segundo com a insustentabilidade de medidas liberais num dos países mais pobres da Europa e face ao crescimento descontrolado dos focos de exclusão social. São estas as propostas e será fundamentalmente entre elas que as massas deverão optar, por mais opostas que sejam e mesmo se o ideal fosse uma conjugação entre elas.
A bipolarização serve como plataforma político-ideológica das ideias de esquerda e de direita e contribui para a dissolução de quadros ideológicos alternativos. Por outro lado, a necessária generalização do discurso para se adaptar às grandes questões deixa de parte as pequenas questões, quer provenientes da esquerda, quer da direita. Vivemos um período de incerteza relativamente à identidade a produzir, marcado pelos "momentos" , pelos 11's de Setembro, pelos 25's de Abril, pela notícia de abertura do "telejornal", mais do que pela existência de um corpo de ideias coerente com a totalidade. Por isso é tão difícil nos sentirmos identificados com a totalidade, a maioria ou o que seja. A crise das simpatias partidárias tem como paralelo as crises das máquinas partidárias, a instabilidade e a questionabilidade dos líderes. A simultaneidade entre a mão de ferro da oligarquia (que Mitchels diz ser o risco da partidocracia) e o crescimento da apatia política representa um desenquadramento entre o vivido e o discursado, entre o pragmatismo e a projecção ou, como diria Pareto, um enorme fosso entre os resíduos das massas e as derivações produzidas racionalmente pelas elites.
A questão resumir-se-á, nos próximos dias, a uma luta de gladiadores onde o mais importante será a definição do vencedor e do vencido. Este é o outro sinónimo de uma crise de legitimidade que afecta tanto os governantes, quanto os opositores. O que está em questão é, fundamentalmente, a definição do vencedor e não de um parlamento que reflicta a pluralidade de interesses colectivos, de modos de pensar de agir e de sentir colectivamente organizados e socialmente coerentes.