Nuno Miguel Augusto

Direita, esquerda... globalizar!

 

Quando os primeiros barcos aportaram em África ficámos a conhecer um mundo novo, homens novos, diferentes, "exóticos". Até mesmo os intelectuais se ressentiram de uma visão etnocêntrica que definia o eu como civilizado e o outro como bárbaro. Na Antropologia criava-se a ideia do "primitivo" e na linguagem de senso comum a de atrasado. Dizia-se que o negro tinha características sexuais invulgares, não por dotes próprios, mas porque era associado pelos europeus ao chimpanzé e à sua reconhecida energia sexual.
Estas são apenas algumas das marcas que definem o chamado pensamento ocidental ou a civilização ocidental. Não é fácil definir civilização no contexto socio-político da modernidade, assim como não é fácil definir o seu epicentro. É mais que claro que os Estados Unidos, sobretudo desde o pós-Guerra, têm procurado impor um modelo económico, social e político de tal modo forte que se afirmou com carácter civilizacional. George Ritzer chama-lhe "macdonaldization", muitos entendem o processo "civilizacional" como um instrumento de repressão do self, mas alguns consideram-na a legítima conquista do mais forte. Consideram-na a emergência de um novíssimo paradigma, como se o hambúrguer a transbordar de maionese ganhasse um novíssimo encanto. As histórias de caminheiros resumem-se muitas vezes ao acto de abrir a cortina da carruagem e apreciar a paisagem, não de pensar a paisagem. Viver num mundo que se julga perfeito, porque não existe outro ou porque somos felizes neste é, no mínimo, entediante, mas sobretudo cómodo, porque acrítico.
Conjugar crescimento económico com globalização é excelente, sobretudo do ponto de vista dos neo-liberais, que insistem que a globalização se resume à mundialização económica (cujo epicentro é supostamente desconhecido). A relação entre o nacionalismo dos conservadores e o neo-liberalismo resulta tão bem quanto a de democracia e liberalismo. Dado que quem cá está já não aceita tudo, que venham outros, mais "fortes" e mais baratos. Se os de cá exigem "demasiados" direitos sociais, ou se o Estado exige "demasiado" rigor fiscal, deslocaliza-se a produção para onde (pelo menos por enquanto) os direitos sociais não existem. Quando o desemprego bate à porta, a culpa é dos imigrantes, não de quem deles depende para o crescimento económico, nem de quem fechou cá para abrir lá. Um dia, a direita viu-se confrontada com a transformação do conceito clássico de soberania e o conceito de Estado-Nação tornou-se difuso. Abram-se pois as fronteiras aos fluxos económicos, mas fechem-se aos fluxos migratórios. Afinal, parece que René Dumond tem alguma razão ao defender que a pobreza está a "subir" dos países do Sul para os países do Norte mas não é trazida pelos fluxos migratórios, mas por um modelo centrado no económico que acarreta instabilidade inclusive nos países "desenvolvidos".
O modelo liberal, assente na ideia do mais forte, não se aplica mundialmente. A direita, quando é liberal, aceita a imigração porque por cá já nem todos se sujeitam, quando é conservadora culpabiliza a imigração. Não fossem os desgraçados dos movimentos sociais e não seriam necessários imigrantes, pensam. Quinhentos anos depois, os exóticos povos do empobrecido Sul chegam às nossas costas marítimas em viagens ainda assim mais tortuosas que as das naus desse tempo. Não nos acham exóticos, acham-nos fantásticos, até se aperceberem que são uma vez mais objecto de uso e de estigmatização. Criminosos, delinquentes é o que são, diz-se. Se entendermos a delinquência como resultado de uma incapacidade em integrar e inserir socialmente, a resposta será bem mais clara, ainda que menos simplista ou popular.
Por outro lado e por influência de alguns dos pensadores que emergiram dos próprios países sub-desenvolvidos a esquerda foi sempre mais favorável a uma relativização do processo de globalização e à procura de soluções alternativas. Ainda assim, teve dificuldades em se desligar da ortodoxia marxista e, nomeadamente, do materialismo histórico. A ideia de "operários de todo o mundo uni-vos" era moldada para a sociedade industrial de Engels (que conhecera as condições dos trabalhadores na Inglaterra) e por Marx (que se propusera a definir um socialismo científico que se contrapusesse em simultâneo ao capitalismo e ao socialismo utópico). A própria ideia de classe como conceito chave e operacional da mudança social perde sentido (do mesmo modo que o perde hoje nas sociedades ocidentais). Como na maioria dos países subdesenvolvidos o proletariado não reunia as mesmas condições para a sua mobilização colectiva e a ideia de industrialização era inexistente, adaptou-se o modelo marxista ao campesinato e chamou-se-lhe neo-marxismo. Ainda assim, o raciocínio era idêntico - cabe aos camponeses operar a mudança, numa luta contra o capital, não só interno, como externo. A negação do capitalismo é, no entanto, incompatível com a sua afirmação e em nada contribui para a sua rediscussão. O capitalismo, tal como a globalização, afirmou-se como um processo irreversível. A luta de classes não eliminou o capitalismo como o supunham deterministicamente os marxistas ortodoxos, mas adaptou socialmente o capitalismo. No cenário da globalização, a esquerda ortodoxa está igualmente baralhada e parece não encontrar alternativas ao materialismo histórico.
O capitalismo não tem em si o gene da sua própria destruição, mas da sua própria manutenção. Daí a importância de um pensamento crítico relativamente ao capitalismo e não a sua teimosa negação ou a sua aceitação sem mais. Trata-se de uma responsabilidade em adequá-lo socialmente, seja pelos intelectuais, seja pelos ditos "arruaceiros", como aqueles que garantiram a diversidade de direitos sociais que nos distanciam do subdesenvolvimento, que garantiram iguais direitos às mulheres, sustentabilidade ambiental ao desenvolvimento ou igualdade entre raças. Vitória dos mais fortes? Talvez, mas lenta, gradual, modeladora, não tirana ou impositiva, mas democraticamente necessária, uma das responsabilidades fundamentais de quem nasce neste mundo, sinta-se ou não feliz por viver nele.