A requalificação do Pelourinho é a imagem de uma Covilhã em mudança
O desafio de Nuno Teotónio Pereira
Requalificação do Pelourinho: uma referência a assinalar

"O novo Pelourinho antecipa o futuro da Covilhã e reflecte os ideais de uma nova cidade, que se espera seja feita à dimensão humana".


Elisa Calado Pinheiro *
NC/Urbi et Orbi


O acelerado crescimento urbano que tem caracterizado a nossa história recente, para além de alterar profundamente os padrões por que se rege a nossa vida em sociedade, fez ainda estilhaçar, numa multiplicidade tipológica, o conceito de cidade que herdámos da Revolução Industrial. Todavia, actualmente, apesar da coexistência desta diversidade de modelos urbanos, é de salientar que, em quase todos eles, os ideais clássicos que caracterizaram tanto a pólis grega como a urbe romana constituem ainda os valores perenes por que se pauta a sua qualificação.
As nossas cidades materializam e reflectem, quais espelhos, tanto as nossas realizações como as nossas expectativas de vida e, por esse motivo e em função de umas ou de outras, ao longo do tempo, vão-se transformando. Nas suas ruas e praças vão-se inscrevendo as linhas de força que estruturam a identidade comunitária que as alimenta, entrecruzando ainda as dimensões de passado, presente e futuro.
Por todas estas razões, acompanhar a concretização urbanística de uma nova fase da evolução da Covilhã, como aquela a que actualmente se assiste, através da bem visível valorização da Praça do Pelourinho, enquanto espaço de convivialidade e símbolo identitário por excelência da cidade, constitui uma experiência gratificante, que não pode deixar-nos indiferentes.

Covilhã: pólo agregador

Desde o séc. XII que, nesta encosta protegida da Serra da Estrela, a Covilhã se constituíra como o pólo agregador de uma vasta área, delimitada pelas montanhas que sobressaiem na Cova da Beira (Estrela e Gardunha), pelos percursos dos rios Zêzere e Tejo, afrontada ainda pela autoridade dos reinos de Leão e Castela e pelo poderio militar da moirama.
O seu concelho transformara-se, já então, "no núcleo mais importante da vertente oriental da Serra da Estrela" (1), porque o alfoz se estruturara a partir de um espaço rico de diversidades e propício a uma auto-subsistência, garantida pelas actividades agro-pastoris, pela caça, pela pesca, pelo abastecimento de lenhas e pela abertura à penetração mercantil. A montanha, de muralha alterosa, de fronteira e de escudo cristão, transformara-se na matriz desta vasta região a que traçara um perfil que foi sendo sedimentado, ao longo dos tempos, pelo labor e engenho dos homens que, face aos condicionalismos ambientais, se afeiçoaram na prática dos lanifícios. A Serra da Estrela, propiciando aos gados os pastos naturais, foi ponto de encontro dos grandes trajectos da transumância, ofereceu a matéria-prima, a "bondade" das suas águas e facultou as lenhas que favoreceram a especialização no fabrico dos panos. Neste contexto a Covilhã, através da dinâmica empresarial e da talentosa especialização da sua mão-de-obra, foi assumindo o papel de centro polarizador, granjeando um lugar de destaque na economia nacional, transformando-se no centro histórico dos lanifícios portugueses. Foram, de resto, estes que justificaram, em 20 de Outubro de 1870, junto do poder central, a sua elevação a cidade.

"Cidade Granja"," cidade fábrica"

O tecido urbano da Covilhã foi-se desenvolvendo, ao longo do tempo, na ambivalência de uma "cidade-granja / cidade-fábrica", segundo a descrição lapidar de Manuel Nunes Giraldes (2). Foi esta fértil complementaridade entre os espaços rural e urbano uma das maiores potencialidades da Covilhã, até aos finais do séc. XIX. A partir de então, por condicionalismos vários, mas sobretudo por acção de alguns covilhanenses de mérito, a Covilhã ir-se-á especializar, até aos anos oitenta do séc. XX, como "cidade-fábrica". Foi este um dos períodos mais marcantes da história da cidade. Com a proliferação das fábricas e o desenvolvimento dos lanifícios moldou-se-lhe a alma industrial, transformando-se num espaço tanto física como socialmente diferenciado no panorama urbano nacional. Todavia, só agora, nos alvores do séc. XXI, se transforma verdadeiramente num espaço socialmente harmonizado, apresentando-se como uma nova Pólis, onde as funções urbanas se colocam finalmente ao serviço da qualidade de vida dos seus habitantes.
O transcurso desta história, como a própria natureza do lugar, foram sendo sempre sublinhados a traço grosso e a cores fortes, face à sobrecarga do trabalho dos operários e às inusitadas expectativas dos industriais. Até à actualidade a fábrica foi o cenário natural em que se desenrolou a vida de todos eles. Mas foi também, e sobretudo, o núcleo de uma conflitualidade latente e contínua e a raiz da profunda clivagem social e do próprio modelo de desenvolvimento urbano. A estratificação social que ela gerava transpunha-se para os espaços públicos e assim, no Pelourinho, juntavam-se os que, encostados ás grades, despojados, assistiam, ressentidos, ao passar das horas sempre iguais e os que freneticamente por ali passavam, em automóveis de último modelo, glosando a dimensão afirmativa do "ter".

As intervenções no Pelourinho

Este longo processo repercutiu-se na organização do tecido urbano da Covilhã e inscreveu-se claramente nas transformações sucessivas a que foi sujeito o Pelourinho.
Esta Praça, adjacente ao casco medieval, vai-se desenvolvendo ao ritmo do crescimento urbano e, desde o séc. XVI até à actualidade, assumiu-se como o coração da cidade e o centro do poder autárquico, através da implantação do próprio Pelourinho, enquanto manifestação expressiva da autonomia e da liberdade concelhias.
Desde o séc. XVII até à actualidade, esta Praça fez-se e refez-se ao sabor e gosto das elites locais, que não resistiram a inscrever-lhe, porque referência simbólica por excelência da cidade, a sua passagem pelo poder.
Foi o mercado abastecedor da "cidade-granja / cidade-fábrica" até aos anos 40 e 50 do séc. XX quando, após a mais agressiva das intervenções que sofreu, se veio a transformar no centro económico, social e político da "cidade-fábrica". A nova Praça, demarcada pelos edifícios da Câmara e do Montalto, viu então nascer outras construções que lhe redefiniram e enfatizaram estas funções, como é o caso dos antigos Correios e da Caixa Geral de Depósitos, transformando-se, após diversas e profundas intervenções, que não resistiram ao tempo, numa ostensiva placa destinada ao estacionamento e à circulação dos automóveis.
Nos anos 70 e 80, acompanhando as profundas alterações do tecido sócio-económico da cidade, geradas pela crise e pela subsequente reestruturação dos lanifícios, o Pelourinho foi ainda palco de novas remodelações que bem patentearam o desânimo colectivo quanto ao futuro da que se augurava então como "cidade fantasma". Refugiando-se no bálsamo do passado, às referências a Frei Heitor Pinto e à memória da viagem de Pêro da Covilhã faltou então assinalar a dimensão do presente e do futuro.
Todavia, à medida que a ideia de Universidade se vai corporizando, a Covilhã, qual Fénix renascida, começa a erguer-se das ruínas das fábricas e, timidamente, vai assumindo, no tecido urbano, a par de ostensivas manifestações de um excessivo crescimento desordenado, a evidência do seu profundo processo de mudança. É o período em que, curada das feridas, ela extravasa para as suas franjas, no sopé da colina. É esta cidade, de renovada esperança, que se vislumbra hoje no novo Pelourinho ainda inacabado, mas já visivelmente em sintonia com as duas vertentes que alicerçam o seu presente: uma indústria de lanifícios solidamente ancorada no passado e que se projecta vigorosamente no futuro; uma dinâmica universidade que é o suporte científico do desenvolvimento sustentado não só da cidade como de toda a região em que se insere.

Nuno Teotónio Pereira: um êxito na renovação do Pelourinho

Da autoria do Arquitecto Nuno Teotónio Pereira, a recente intervenção de requalificação do Pelourinho, constitui uma referência assinalável, pela elevada qualidade de que se reveste, na tão acidentada história das alterações urbanísticas da Covilhã.
Para além de se apresentar como um dos projectos de mais difícil realização, tantas as condicionantes constrangedoras que teve que equacionar e assumir, constituiu certamente para o seu autor um desafio. Todavia Nuno Teotónio Pereira, com a experiência e talento que lhe conhecemos, fruto de uma alargada mundividência cultural, alicerçada na mais profunda formação e prática humanistas, ganhou-o para que todos nós possamos fruir desta obra.
O programa proposto visava refuncionalizar e renovar a Praça. Construir um parque de estacionamento apresentava-se como um incontornável imperativo de natureza económica e política, justificado ainda por razões de gestão urbanística, tendo em vista a reanimação do tecido urbano antigo. Nuno Teotónio Pereira realizou-o com êxito, minimizando-lhe os efeitos de maior impacto. Restava-lhe requalificar a Praça, missão quase impossível, tão diversas e dissonantes eram as sobras das alterações urbanísticas precedentes.
Com uma intervenção que podemos classificar de minimalista, Nuno Teotónio Pereira conseguiu harmonizar a amálgama caótica em que se transformara o desarticulado Pelourinho, assim como reabilitar os velhos espaços e ampliá-los ainda através de uma integração uniformizadora com os que foram abarcados nas áreas circundantes da Igreja da Misericórdia e ainda da velha Praça do Largo 5 de Outubro. Deste modo, reenquadrou a Igreja e devolveu-nos um Pelourinho mais amplo e harmonioso, em cujo redimensionamento se reflecte o recente desenvolvimento sócio-económico e cultural da Covilhã. Valorizou as evidências patrimoniais e refrescou o passado, conjugando-o ainda com algumas referências estéticas da nossa contemporaneidade, numa convivência e diálogo salutares entre tradição e inovação. Não confundiu a preservação do património com conservadorismos serôdios que advogam paragens artificiais no tempo, que, por natureza, não pode aprisionar-se.

Modernidade e dimensão humana

Nuno Teotónio Pereira demarca-se ainda, nesta intervenção, das perspectivas utilitaristas do novo-riquismo cultural, tão em voga na nossa arquitectura contemporânea.
A modernidade é introduzida pelo elemento novo e à primeira vista dissonante que constitui a escultura emblemática de Irene Buarque. É ela que demarca o coração da nova Praça e corporiza em mármore os fundamentos da nova cidade que na Covilhã se está a erguer das ruínas do passado. Daí a incompreensão de quantos ainda nela se não revêem… Contudo pode considerar-se uma obra de referência, que a ninguém deixa indiferente pela originalidade de que se reveste, perturbando mesmo alguns. Delimita esteticamente um espaço que não aprisiona, antes se oferece para poder ser fruído pelos que a atravessam e a admiram dos mais diversos ângulos da Praça. Esta obra permite uma leitura dinâmica, acentuada pela abertura com que se apresenta, assim como pela impressão de movimento que transmite e pela modulação harmoniosa dos elementos de que se compõe.



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Directora do Museu de Lanifícios da UBI e Co-Coordenadora do Programa de Inventariação do Património Industrial da Covilhã