Por Sónia Balasteiro e Sandra Invêncio



João Malaca Casteleiro, coordenador científico do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea

Urbi@Orbi - Como é que surgiu a sua integração no projecto da Academia de Ciências de Lisboa?
João Malaca Casteleiro -
Eu entrei na Academia em Fevereiro de 1979 convidado por Jacinto Prado Coelho que foi meu professor na faculdade. Ele tinha a esperança de que eu pegasse no projecto do dicionário e o concluísse, uma vez que já vinha desde a fundação da Academia, em 1779 e nunca tinha passado da letra "a".

Urbi@Orbi - Qual o objectivo da criação do novo dicionário?
JMC -
A grande intenção era, primeiro, cumprir um objectivo da Academia: publicar o seu próprio dicionário. O segundo era publicar uma obra actualizada da Língua Portuguesa, não só do ponto de vista lexical mas também do ponto de vista metodológico. Procurámos fazer um dicionário o mais rico possível no que diz respeito à informação. É evidente que há sempre alguma lacuna, algum erro... Enfim, a primeira edição já saiu e a segunda há-de ser melhor.

Urbi@Orbi - Como descreveria a vida de dicionarista tendo em conta que foram necessários 12 anos para realizar este projecto?
JMC -
É um trabalho aliciante, extremamente interessante, ao contrário do que se possa julgar. As pessoas pensam que é um trabalho cansativo, rotineiro, sem chama nem criatividade. Pelo contrário: cada palavra que nos surge é um problema. O desafio consiste em conseguir, num texto curto, o mais claro e objectivo possível, dar conta da significação dessa palavra, isto é, do conjunto de significados ou acepções que ela tem, das construções sintácticas, combinatórias em que entra e expressões idiomáticas. Além disso, estamos sempre a ser desafiados por palavras novas.

Urbi@Orbi - Quais são as grandes inovações em relação aos dicionários anteriores?
JMC -
Não há nenhum dicionário que tenha a informação tão pormenorizada sobre as preposições como
o dicionário da Academia. Registámos muitas palavras novas, muitos neologismos. Por exemplo, com "ciber", que é agora um elemento de formação dando origem a outras palavras como ciberespaço, cibercafé ou cibernauta. Já se fala agora em ciberterrorismo, palavra que não registámos. Creio que o dicionário da Academia é o primeiro a registar euro, termo de origem grega, como substantivo masculino para designar a moeda europeia. Antes, este termo era apenas um elemento de formação que dava origem a determinadas palavras como eurocéptico, por exemplo. Uma das grandes preocupações foi estar atento à língua que se fala, que se vive, que se escreve, à língua viva. E introduzimos uma inovação porque este dicionário regista os significados ou acepções das palavras, dá exemplos do uso do termo nessa acepção mas dá também aquilo a que chamamos abonações ou citações de autores literários e não literários. Demos muita importância à linguagem dos media e citámos os principais jornais portugueses. Há muitas palavras que temos dificuldade em encontrar nos escritores ou nos autores de carácter mais científico e técnico e que aparecem muito nos jornais.

Urbi@Orbi - A comunicação social acaba por influenciar a evolução da língua...
JMC -
Exacto. E é a comunicação social que, muitas vezes, introduz a inovação lexical e variadíssimos estrangeirismos. Tive um colaborador que, durante seis anos, fez o trabalho de levantamento dos estrangeirismos que corriam nos principais jornais portugueses, que resultou em cerca de quatro mil diferentes. Desses, tendo em conta a frequência de uso e a importância do ponto de vista comunicativo, aproveitámos cerca de mil que registámos no dicionário. Mas desses mil só registámos 200 na sua forma de origem.

Urbi@Orbi - Porque motivo alguns estrangeirismos foram aportuguesados, outros traduzidos e outros mantidos na língua original?
JMC -
O critério foi o uso e a implantação. Há alguns estrangeirismos que estão de tal forma implantados que é muito difícil substituí-los. Por exemplo, software: tentámos, em determinada altura propor a tradução deste termo para suporte lógico...ninguém utiliza! Então, registámos software tal como se escreve em inglês. Outro exemplo é marketing: a tradução para mercadologia, nem sempre fica bem. Noutros casos procurámos traduzir, mesmo sabendo que há formas que estão implantadas tal como check-in no aeroporto ou na entrada de um hotel. Aí propusemos a tradução para registo de embarque no aeroporto ou registo de entrada para o hotel.


"O dicionário da academia tem como um dos seus objectivos zelar pela defesa da Língua Portuguesa"



Dicionário da Polémica

Urbi@Orbi - Já se começam a utilizar palavras como pivô ou ateliê no quotidiano dos portugueses. De quanto tempo vamos precisar para encontrar a designação registo de embarque em vez de check-in, por exemplo?
JMC -
Vai ser complicado porque não há uma política de língua eficaz. Nós, portugueses, somos muito dados ao estrangeiro. Até nas compras que fazemos, preferimos roupa estrangeira, música estrangeira, comida estrangeira... Também em relação à língua somos pouco cuidadosos e portanto não mudamos. Criticaram-nos dizendo que um dicionário não tem que propor palavras e sim registar as que existem. Nós achamos que não. O dicionário da academia tem como um dos seus objectivos zelar pela defesa da Língua Portuguesa e isso passa por reduzir, na medida do possível, o número de estrangeirismos através da tradução ou adaptação, aportuguesamento e semi-aportuguesamento. Exemplificando, staf, stress ou stand são estrangeirismos que vêm do inglês. Os brasileiros resolveram a questão acrescentando um "e" protético de acordo com a história da língua e com a tradição ortográfica. Mas se nós o fizermos, quem é que vai dizer estresse? Escrevemos de uma forma muito distante daquela que se diz. Acrescentámos apenas o "e" no final. Houve também preocupação com a sonoridade e harmonia das palavras. Algumas são mais agradáveis de pronunciar e ouvir do que outras.

Urbi@Orbi - Houve alguns problemas relacionados com os colaboradores deste projecto. O que é que aconteceu?
JMC -
Os 61 nomes que são citados na introdução do dicionário são de pessoas que colaboraram na sua elaboração por um período superior a seis meses. Não é possível elaborar um dicionário com indivíduos a trabalharem apenas a meio tempo. Precisávamos de gente que estivesse plenamente empenhada. E isso só conseguimos com a colaboração do Ministério da Educação que nos possibilitou o destacamento de vários professores do Ensino Secundário. Houve várias pessoas que, ao fim de três meses a trabalharem connosco, conseguiam um bom emprego e iam-se embora. Hoje em dia não se procura trabalho, quer-se é emprego.

Urbi@Orbi - Numa entrevista ao Público definiu este dicionário como o "dicionário da polémica". Porquê?
JMC -
É natural que cause polémica porque lidar com a língua e elaborar um dicionário implica sempre alguns problemas. Acabei por fazer essa afirmação seguindo esta perspectiva na sequência de uma pergunta que me foi feita. Mas o objectivo não era causar polémica. A verdadeira intenção era que este dicionário fizesse pensar sobre os problemas da língua. Há jornais que adoptaram as nossas propostas e outros não. A mudança implica sempre algum tempo...

Urbi@Orbi - Considera que 125 euros por um dicionário é um preço demasiado elevado tendo em conta que a pensão mínima de reforma se aproxima destes valores, por exemplo?
JMC -
Concordo plenamente. É um preço mais elevado do que tinha sido previsto inicialmente. Este preço irá manter-se durante mais algum tempo e depois irá baixar, tendo venda livre. Apesar do preço, no início deste ano já se tinham vendido 40 mil exemplares e a primeira tiragem esgotou em cerca de três semanas.

Urbi@Orbi - Qual o balanço que faz em relação à aceitação deste dicionário por parte do público?
JMC - O balanço é positivo. Eu distingo três tipos de crítico. O "chico-esperto" é aquele que só sabe fazer críticas destrutivas. Se não está lá uma palavra, pronto...o dicionário já não presta! Depois temos o "coca-bichinhos" que anda à procura dos bichinhos, ou seja, das falhas. Quando encontra alguma vem logo à praça pública dizer que o dicionário não serve. Finalmente, há o crítico avisado que sabe fazer uma avaliação global. Nota os aspectos negativos mas também os positivos e esse tipo de crítico tem sido muito favorável a este dicionário. Dizem mesmo que este é o melhor dicionário da Língua Portuguesa até hoje editado.

Urbi@Orbi - O que podemos esperar da segunda edição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea?
JMC -
Podemos esperar um aperfeiçoamento, mais rigor tendo em conta as reacções da opinião pública. Há críticas positivas, avisadas, correctas que não devem ser ignoradas.

Urbi@Orbi - A sua vida mudou muito após o lançamento do dicionário?
JMC -
Houve alguma agitação depois da publicação. Mais tarde as coisas acalmaram e a minha vida continuou a ser pacata, como sempre foi. Nunca fui, não sou nem quero ser uma figura mediática.

 



"Deveria existir uma política de língua coerente e consistente"

O curso de Língua e Cultura Portuguesas da UBI tem aspectos muito positivos que o fazem diferir de outros cursos do género


Urbi@Orbi - Como encara o actual estado da Língua Portuguesa tendo em conta os diferentes países que a falam?
JMC -
A Língua Portuguesa não pode perder o essencial da sua unidade. Deveria existir uma política de língua coerente e consistente, isto é, uma grafia igual para todos os falantes da língua, apesar do mesmo não se passar na oralidade. O facto do brasileiro dirigir o automóvel e do português o conduzir é uma questão irrelevante na medida em que existe uma intercompreensão. É certo que há diferenças lexicais, variantes dentro da língua mas o mais importante é a ortografia.

Urbi@Orbi - Haverá uma tendência para a língua evoluir de forma diferente nos diversos países lusófonos?
JMC -
De certa forma. É o que acontece nos países africanos. Angola, por exemplo, modificou a grafia portuguesa ao introduzir letras como o "k", o "y" e o "w" de forma generalizada. Por vezes, escrevem Lwanda e não Luanda. Assim como Angola, também Moçambique e a Guiné Bissau não ratificaram o acordo ortográfico devido às influências de outras línguas como o inglês e o francês.

Urbi@Orbi - Acha que a Língua Portuguesa corre algum risco?
JMC -
É na Guiné Bissau e em Cabo Verde que a Língua Portuguesa corre sérios riscos de desaparecer. Estes países usam o crioulo e o português é cada vez menos falado. Em Cabo Verde, há até quem defenda que a língua oficial deveria ser este dialecto e não o português. Acontece que o crioulo é uma língua pouco uniforme variando de ilha para ilha. Além disso, esses países não têm professores devidamente formados para ensinarem a língua portuguesa e têm falta de material didáctico. Deveria estabelecer-se um maior contacto com os países africanos. A política de colocação de professores portugueses no estrangeiro está errada. É dada preferência aos professores com mais idade e mais tempo de serviço mas a verdade é que deveria haver mais flexibilidade. Há que abrir mais portas para os jovens. São eles que têm mais facilidade em adaptar-se a situações novas e que se encontram mais disponíveis. Poderia ser também uma boa forma de combater o desemprego.

A importância da língua

Urbi@orbi - Na semana passada apresentou o dicionário a um público muito mais jovem do que o habitual, na Escola Integrada de S. Domingos da Covilhã. Como descreve esta nova experiência?
JMC -
Foi das experiências mais gratificantes da minha vida. Fiquei deveras comovido com aquela miudagem, com as perguntas pertinentes que me fizeram. Houve até um miúdo que me perguntou onde é que eu fui buscar tanta palavra. E não podemos esquecer que as crianças são os novos falantes da nossa língua. Foi muito interessante.

Urbi@orbi - Estão a sair os primeiros licenciados em Língua e Cultura Portuguesas da UBI. O que sente, como fundador do curso?
JMC -
Sinto um grande contentamento porque são jovens muito capacitados, empenhados e de grande qualidade. Neste momento estão a realizar um estágio pedagógico profissionalizado.

Urbi@orbi - Considera que a estrutura curricular do curso corresponde às actuais exigências da actividade docente?
JMC -
Creio que sim. O curso de Língua e Cultura Portuguesas da UBI tem aspectos muito positivos que o fazem diferir de outros cursos do género. Por exemplo, a maior parte não dá qualquer importância ao estudo do léxico. Aqui na UBI existe a disciplina de Lexicologia e, para estudar e ensinar uma língua, o dicionário é um instrumento fundamental. A Lexicologia é uma área muito importante que parece estar um pouco esquecida. O curso compreende uma formação científica de base polivalente aliada a uma formação pedagógica complementar e posso dizer que os estágios estão a correr muito bem. O que realmente lamento é que não se cumpra o preceito bíblico " crescei e multiplicai-vos". O país tem apenas dez milhões de habitantes e cada vez temos menos alunos.

Urbi@orbi - Que projectos tem para o futuro?
JMC -
Terminámos agora o Dicionário Brasileiro da Academia. O próximo ano será dedicado aos dois volumes do Dicionário Escolar dirigido aos mais pequenos. Um outro projecto, também de um ano, é o da realização de um dicionário de sinónimos moderno, voltado para a contextualização. Depois disso, arrancaremos com um outro grande projecto: o Dicionário da Língua Portuguesa Clássica. Duas equipas irão trabalhar em simultâneo. Temo apenas que não seja capaz de concluí-lo. Tenho 66 anos! Mas tenho a certeza de que se não chegar ao fim alguém concluirá esta obra.





Perfil de João Malaca Casteleiro


O Prof. Doutor João Malaca Casteleiro nasceu em 1936 no Teixoso, freguesia do concelho da Covilhã. Concluiu a sua licenciatura em Filologia Românica em 1961, e doutorou-se em 1979, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com uma dissertação em Sintaxe da Língua Portuguesa. É desde 1981 Professor Catedrático na mesma Faculdade e professor Convidado na Universidade da Beira Interior, no Departamento de Artes e Letras. É presidente do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa e ao longo da sua carreira de professor orientou já mais de meia centena de teses de doutoramento e de mestrado.
A sua bibliografia, iniciada com a tese de licenciatura em 1961, é constituída por muitas dezenas de estudos dedicados à linguística e à lexicologia.
Em 1986 foi agraciado pelo Governo Francês com o grau de Cavaleiro das Palmas Académicas.