Nuno Miguel Augusto

Dualismo europeu

 

Os factos ocorridos na única fronteira terrestre portuguesa obrigam-nos a repensar um conjunto de elementos que continuam a marcar a chamada União Europeia. Primeiro de tudo revelam-nos o continuado peso do carácter económico que marca a constituição deste suposto bloco de direitos sociais e políticos, em nada estranho ao próprio percurso dessa união - Comunidade do Carvão e do Aço, Comunidade Económica Europeia e, há bem pouco tempo, União Europeia. Os factos provam-nos a persistente incapacidade por parte de alguns países europeus em aceitar a Europa como uma construção não só económica, mas igualmente social e política, produtora de direitos e deveres comuns a todos os estados-membros.
A produção da chamada extensividade ilimitada da democracia, resultado da passagem de uma noção clássica de soberania (o orgulhosamente sós) para uma noção dialogal de soberania (o orgulhosamente unidos) é totalmente negada com acções deste tipo, opondo-se ao próprio carácter cívico das democracias trans-nacionais. Não bastará certamente às democracias trans-nacionais a selecção de representantes em órgãos fortemente condicionadores da acção política nacional, relegando para segundo plano a intervenção cívica dos seus cidadãos. É o próprio carácter condicionador destes órgãos que obriga a uma acrescida responsabilização dos cidadãos e à sua participação activa na construção desses mesmos instrumentos de regulação. Não basta, portanto, a recorrência sistemática à imagem da cidadania europeia se, aquando do seu exercício, se lhe colocam um conjunto de entraves injustificáveis.
Se as decisões da União Europeia têm uma abrangência europeia, não deixa de ser coerente que a participação política e a reivindicação de direitos sociais tenha uma igual abrangência. Ainda que esta ideia possa parecer consensual, a verdade é que a UE se afirma crescentemente mais como um instrumento regulador e normativizador, que como uma construção democrática e ampliadora de recursos e de direitos sociais e políticos, ao permitir que, isoladamente e esquecendo a própria natureza dessa União, os Estados-Nação assumam posicionamentos à margem da natureza democrática e politicamente aberta da construção europeia. O que está em causa não é apenas a livre circulação de bens e pessoas, mas também a livre circulação de instrumentos de participação cívica e democrática.
Ao limitar-se a aceitar os "lamentos" espanhóis, o Governo Português está a contribuir amplamente, quer para a produção de uma imagem de subserviência relativamente à Europa, quer para a reprodução de uma imagem isolacionista da construção política europeia. Do mesmo modo que sofremos hoje as consequências da imposição de regras económicas, de critérios de convergência ou de limites à produção, também a Espanha deverá, em sede própria, ser responsabilizada pelo incumprimento de critérios de convergência política. A Europa não pode ser regrativa apenas do ponto de vista económico. Deve sê-lo igualmente sempre que direitos fundamentais dos cidadãos sejam postos em causa, daí que a posição do Governo Português devesse ser mais sólida e não se limitar a uma troca de mimos entre estados-membros.
Não se pode ser firme e austero apenas internamente e assumir uma postura bacoca e subalterna relativamente ao exterior. A globalização política prova-nos que quem mais ganha é quem mais se afirma e quem mais coragem demonstra na defesa de interesses nacionais legítimos. A pergunta que se impõe é inevitável - se fosse ao contrário, durante quanto tempo andaria Portugal na ponta do sapato europeu? Quais seriam, desta vez, as sanções? Não se trata, como afirma desesperadamente o Primeiro Ministro, de declarar guerra a Espanha, nem de erguer velhos fantasmas de Aljubarrota. Trata-se, apenas e só, de responsabilizar do mesmo modo que somos responsabilizados.