Por Ana Rodrigues



A sede do CARCB é um espaço de convívio e apoio para todos os que procuram combater o alcoolismo

"Aturei e sofri muito durante mais de 20 anos, mas agora a vida melhorou bastante". As palavras são de Fernanda Dias, esposa de um alcoólico recuperado. Com alguma timidez fala dos momentos difíceis por que passou e do mau ambiente familiar que o problema de alcoolismo do marido originava.
Cabisbaixa, conta que uma vez chegou a levar com um tacho na cabeça por ter repreendido o marido alcoolizado. " Não lhe podia dizer nada", diz em tom de murmúrio. Para além do muito dinheiro que gastava em bebida, ainda chegava a casa e descarregava o mau humor na família. O que revoltava também os filhos.
Esta situação durou até há dois anos, quando, em jeito de ultimato, familiares incitaram o paciente a dirigir-se ao Centro de Alcoólicos Recuperados da Cova da Beira (CARCB), que o encaminhou para o tratamento.
Fernanda reconhece a grande ajuda que o Centro veio dar, e já recomendou esta instituição a mais gente. Nomeadamente a um parente a quem o vício do álcool roubou, entre outras coisas, a família, que se afastou.
O CARCB existe há menos de três anos e desde então já recuperou cerca de 400 doentes alcoólicos. Da zona e não só. Este centro funciona em regime de voluntariado, com a colaboração de alcoólicos recuperados. Tem ainda parcerias com o Centro Hospitalar Cova da Beira, centros de saúde da região, e oito técnicos que fazem o acompanhamento dos pacientes.
José Manuel Amarelo preside à direcção do CARCB. Também ele pode falar do problema na primeira pessoa. Quanto ao caso relatado, adverte que se trata apenas de um tipo de alcoólico. "Não há um perfil" sublinha, "ele pode estar em qualquer classe social, ser de qualquer idade. Pode ser o polícia, o padre, o médico ou o advogado".
José Manuel Amarelo argumenta que nem todos se enquadram no estereótipo do alcoólico conflituoso, que só dá problemas. Há aqueles que não dão nas vistas, ou os que exteriorizam a embriaguez de outras formas. E dá o seu exemplo, de uma pessoa que sempre participou activamente na comunidade. Conta até que quando revelou a algumas pessoas a sua condição teve como resposta uma gargalhada de incredulidade. "Pensavam que apesar dos copos que bebia, não era alcoólico", explica.
Comum a todos os casos é a degradação das relações familiares, mais ou menos grave, e os problemas que surgem em consequência disso.


Recuperação do marido melhorou a vida de Fernanda



Bater no fundo

É importante para o centro que os alcoólicos "percebam e se mentalizem que são eles os grandes beneficiados com a recuperação". Mas as famílias também tiram dividendos. Porque são talvez elas as principais vítimas. A embriaguez frequente acaba por provocar graves problemas de saúde, e ser causa de discussões ou divórcios, acidentes de trabalho, de viação, de violência doméstica, e outros tipos de maus tratos. Também já aconteceu potenciar suicídios.
Os tentáculos deste problema são demasiado abrangentes. Mas agrava-se a situação quando à bebida se alia a miséria, como acontece em muitos casos. E por vezes as vítimas que mais sofrem são os menos culpados. Exemplo disso são as muitas crianças abandonadas em instituições, por incapacidade dos pais para lhes garantirem os cuidados primários.
O Centro de Alcoólicos Recuperados está atento a esta realidade. Procura detectar os casos mais alarmantes e providencia roupa, alimentação e até mobiliário a essas famílias. Coisas oferecidas à instituição para tal fim. O centro ajuda com bens materiais "mesmo que esses indivíduos não se queiram tratar", informa o presidente. Sobretudo quando há menores em risco.
Há casos de alcoólicos que sentem a necessidade de beber para conseguirem trabalhar, devido ao mal-estar físico, como os tremores e suores. Era o caso de António Mendes, recém recuperado e ex-funcionário do sector têxtil O vício pode ser o passaporte para perder o emprego, como acontece com frequência. Outros simplesmente não conseguem ir trabalhar. E isto não acontece apenas nas camadas mais desfavorecidas. Um problema leva a outro e o álcool pode arrastar muita gente com ele.



Primeiro passo

Café e cocktails sem álcool estão à disposição no centro

António Mendes, teve o primeiro contacto com o álcool pelos 13 anos, com os amigos. Mas o vício começou na guerra do Ultramar. "Com o álcool perdia-se o medo", confessa. Foi já pelos 30 anos que agravou o seu estado e percebeu que não podia continuar assim.
Por sua iniciativa foi a Coimbra para ser internado e permaneceu abstinente 19 anos, até que teve uma recaída o ano passado. "É como os estudantes, foi um ano que perdi". Fez recentemente nova recuperação e assegura, com convicção, que não voltará ao mesmo.
Na exígua sala de convívio do CARCB, decorada com recortes de jornal alusivos ao Centro, cartazes e trabalhos manuais que alertam para os perigos do álcool, dá conta das suas motivações: "A família nunca me tratou mal, mas eu fazia da casa um hotel onde só ia comer e dormir, e isso provocava um mau ambiente".
Na altura do primeiro tratamento lembra que foi bastante complicado. Os amigos com quem convivia não ajudavam. Diziam coisas como "se não bebes não vens connosco" ou "agora fazes tudo o que a mulher manda." A sua atitude foi afastar-se desses "amigos" e virar-se mais para a família.
Já José Alberto Pais recorreu àquela casa há mais de um ano a pedido do filho. Recorda, na sua fala arrastada, que "em casa havia sempre chatices, não tinha apetite, e quanto ganhava gastava no álcool". Actualmente colabora em permanência com o Centro. Diz que esta envolvência reforça a abstinência, mas, tal como os outros, afirma que nem sente vontade de beber.
José Manuel Amarelo aos seis anos já comia "sopas de cavalo cansado" em casa dos avós, antes de ir para a escola. Reflexos do meio envolvente em que cresceu. Depois de já ter pensado no assunto algumas vezes, mas nunca ter conseguido, decidiu, bastante motivado, internar-se. Foi aos 40 anos e já lá vão quase quatro. Fê-lo por não se sentir bem com a vida que levava e pelos atritos que isso gerava com os que lhe eram mais próximos.
Começou depois a incentivar outros a fazerem o mesmo e desde então tornou-se essa a sua nova adição. Mas nem todos recorrem ao CAR. Ainda existe muita vergonha relativamente ao alcoolismo.


José Amarelo salienta que um recuperado tem a cabeça mais fresca para pensar e agir





Tratamento

Sob o lema "Nós conseguimos, tu também consegues" o CARCB procura incentivar quem ainda permanece nas teias do álcool. E embora Amarelo entenda que talvez seja um pouco cedo para fazer essas contas, adianta que a taxa de sucesso é de 85 por cento. A maioria dos recuperados tem entre 30 e 40 anos, e há algumas mulheres.
O ideal é que as pessoas vão por sua iniciativa, e antes do tratamento - que agora é feito no Hospital do Fundão- fazem-se reuniões individuais, de motivação. Com pessoas do Centro e com técnicos especializados, para evitar recaídas.
Segue-se, quando necessário, o internamento de três semanas que envolve acompanhamento psicológico e a administração de medicamentos.
A fase seguinte é quando o apoio da família é mais importante. É marcada por terapia de grupo. O presidente desta recente Instituição Portuguesa de Solidariedade Social (IPSS) refere que há espírito de entreajuda, as pessoas sentem-se aí bem porque se identificam com os outros. "Falamos todos a mesma linguagem. Sabemos olhos nos olhos quando se está a sofrer e quando se está a mentir", acrescenta.
António Mendes confirma ser mais fácil fazer a recuperação assim, através de um grupo porque "há um maior apoio".



Aposta na prevenção



Eugénia Calvário, coordenadora concelhia de alcoologia depara-se diariamente com situações familiares difíceis originadas pelo álcool. Um problema que considera mais grave no feminino, "pois a mulher é normalmente o pilar de equilíbrio na casa".
Vítimas comuns costumam ser os filhos de pais alcoólicos. "Podem ter problemas de aprendizagem e até mesmo orgânicos", observa.
Esta médica de clínica geral sublinha que o alcoolismo não apresenta uma tendência social por classes, embora haja uma maior ligação a determinadas áreas profissionais. Dá o exemplo do operário da construção civil e do executivo, que faz os negócios à mesa com bebidas alcoólicas.
Quanto ao Centro de Alcoólicos Recuperados, Eugénia Calvário diz ser o elemento mais importante na motivação. Desde o seu aparecimento o número de consultas aumentou bastante. Um resultado partilhado pela aposta na prevenção. "O centro ajuda na orientação do doente e na manutenção da abstinência", refere.