Tiago Oliveira Rodrigues*

Ensaio à "poesia das ciências"



A matemática é frequentemente confundida com a aritmética e, por vezes, com a geometria. Ela é, certamente, aritmética e geometria, mas não só. Este reducionismo poderá fazer algum sentido se tivermos em conta determinados factos históricos. O nascimento da matemática confunde-se com as primeiras concepções de número e forma que datam de tempos tão remotos como os do paleolítico. Também na Grécia Antiga, a Geometria e a Aritmética juntamente com a astronomia e a música faziam parte dos quatro saberes nucleares que constituíam o Quadrivium. Conta-se que à entrada da Academia de Platão se podia ler: "Que não entre quem não saiba geometria".
É certo que a matemática está associada a números e a formas, ou seja, a quantidades e a espaços. Mas está também estreitamente relacionada com padrões e regularidades, com infinidades e continuidades, etc…
A Matemática é simplificação, é generalização, é formalização, é demonstração, é intuição, é indução e dedução, é imaginação, é abstracção…
A Matemática não é como uma peça de roupa, nem como uma peça musical, nem como um prato de culinária, nem como uma pintura, nem tão pouco como um perfume. O primeiro tacteia-se, o outro ouve-se, o outro saboreia-se, o outro observa-se e o outro cheira-se. Para a matemática necessitamos de um outro "sentido": o raciocínio lógico. Nesta perspectiva, ela é, na sua essência, abstracção embora possa assumir formas e expressões variadíssimas.
Os matemáticos e os filósofos andam há séculos a discutir se a Matemática é inventada ou se é descoberta, se existe por si só ou se há necessidade de um ser pensante para lhe conferir existência. Seja qual for a resposta, a sua importância, a sua autoridade e o seu valor continuarão intocáveis.
A matemática desenvolve um certo estilo de pensamento, que os filósofos apreciam verdadeiramente. Com efeito, os filósofos admiram, não só o raciocínio matemático, mas também a própria matemática. Como escreveram Davis & Hersh, "Para Platão, a missão da filosofia era descobrir o conhecimento escondido atrás do véu da opinião, das aparências, da mudança e da ilusão do mundo temporal. Nesta tarefa, a matemática ocupava um lugar central, pois o conhecimento matemático era o exemplo perfeito do conhecimento independente dos sentidos, conhecimento de verdades necessárias e eternas".
Conjecturar é uma das ousadias dos matemáticos. A conjectura significa entusiasmo, excitação. Mas a demonstração é glória, esplendor, afirmação, respeito e imortalidade. Dizem os formalistas que ou se tem demonstração ou se tem nada. Do ponto de vista do formalista, a matemática só existe a partir do momento em que formulamos alguma hipótese e iniciamos uma demonstração. Podemos dizer que, para o formalista, a Matemática está para os engenheiros, físicos, economistas, etc, assim como a indústria de ferramentas está para os carpinteiros, electricistas, pedreiros, etc… E que mal haverá em ver a Matemática como uma ferramenta? Quem me dera a mim ter inventado a Black n'Decker. Para além de estar rico (brincadeira) tinha contribuído decisivamente para o desenvolvimento tecnológico mundial. Que mais se pode pedir?
Mas o Homem cria por necessidade intelectual e esta criação não persegue finalidade alguma. Quem cria busca a beleza e a beleza é um fim em si. Esta é muitas vezes a atitude do matemático: comportar-se como um artista. Como disse Russel, "Olhadas convenientemente, as matemáticas não possuem apenas a verdade mas também a beleza suprema". Na perspectiva de Brower a utilidade social da matemática é diminuta quando comparada com a sua espantosa fecundidade potencial de ciência livre. O matemático é um ser criativo que escuta a sua voz interior, o seu inconsciente, a sua inspiração singular. Neste sentido, a matemática é também arte. E por ser arte é bela, ou arte é por bela ser. Ora, se a Matemática é arte, se é bela, então é muito mais do que uma ferramenta. Uma coisa bela é útil por natureza. Como escreveu N. Bebiano "para desfrutar a beleza da matemática há que escalar montanhas inóspitas, dominar a sua linguagem hermética, adquirir familiaridade com o seu formalismo pesado e a sua carga notacional". Mas ninguém deve alarmar-se com a dificuldade de seguir os seus pormenores mais técnicos e intrincados.
A matemática foi entendida durante séculos como uma ciência dedutiva que olhava os Elementos de Euclides como uma obra divina. Os Elementos de Euclides são um monumento de toda a história da humanidade. A matemática de Euclides procurava, partindo de verdades evidentes e seguindo raciocínios lógicos, descobrir verdades escondidas e, em princípio, não evidentes.
Mas, já por volta do século IV a.C., Zenão fazia tremer os fundamentos da matemática com os seus paradoxos. Para complicar um bocadinho mais surge um tal de "infinito" que ainda hoje consegue baralhar os matemáticos. Newton e Leibniz envolveram-se profundamente com ele e destas duas relações paralelas, mas independentes, nasceu o cálculo. Decorria então o século XVII. O século XIX haveria de conhecer um dos maiores matemáticos da história: Georg Cantor. Hilbert considerou a obra de Cantor como uma das mais belas realizações da actividade humana no domínio do puramente inteligível. Cantor estudou o infinito relacionando-o com o conceito de cardinalidade de conjuntos. A obra de Cantor deu origem à formulação de conceitos matemáticos polémicos como é o caso da hipótese do contínuo e do axioma da escolha.
Muitos matemáticos dedicaram grande parte do seu tempo à procura dos fundamentos da matemática, ou seja, à construção de uma base que garantisse a sua indubitabilidade. Hilbert afirmou que o objectivo da sua teoria era "estabelecer, de uma vez por todas, a certeza dos métodos matemáticos".
Mais tarde, já no século XX, um senhor bastante inconveniente, de seu nome Kurt Godel, lembrou-se de provar que, qualquer sistema formal consistente e suficientemente forte para conter a aritmética elementar é incapaz de demonstrar a sua própria consistência. Proferir esta frase assustadora é o mesmo que dizer que não há sistemas perfeitos na Matemática. Quando Godel anunciou isto "caiu o Carmo e a Trindade". Disse Hilbert: "Se o raciocínio matemático é defeituoso, onde vamos encontrar a verdade e a certeza?". Com a crise dos seus fundamentos, a matemática deixa de ser a ciência do certo e do errado para passar a admitir a mutação e a indefinição. Russel escreveu "após vinte anos de trabalho árduo, cheguei à conclusão de que não podia fazer mais nada para tornar o conhecimento matemático isento de dúvida".
Um problema mais recente da comunidade matemática tem que ver com a intromissão das novas tecnologias na prática dos matemáticos.
Em 1976, Kenneth Appel e Wolfgang Haken surpreenderam o mundo ao publicarem uma demonstração matemática parcialmente feita por computador.
Antes da demonstração do teorema das quatro cores, apresentada por estes dois autores, a utilização dos computadores na matemática resumia-se a calcular uma resposta aproximada, a gerar dados, a verificar regularidades, nunca afectando o que era demonstrado. Com a publicação da demonstração do teorema das quatro cores tornou-se inevitável o ressurgimento de discussões epistemológicas entre matemáticos e filósofos. Do ponto de vista filosófico, o conhecimento matemático ficava reduzido ao nível do senso comum porque acreditar no computador é o mesmo que acreditar no que toda a gente sabe. Mas isso implica a desvalorização da demonstração como justificação, o que coloca a matemática como um conhecimento vulgar. Para os autores da demonstração do célebre teorema, a natureza da demonstração permanece inalterada, o que mudou foi a prática da matemática. O computador resume-se a fazer, em algumas horas, aquilo que o matemático não conseguiria fazer a vida inteira.
Quer queiramos, quer não, os tempos mudam. Por muito que nos custe a aceitar, a matemática que se fazia há dois mil anos atrás ou no século passado é diferente da que hoje se faz. Penso que isto não constitui problema algum, muito pelo contrário. A possibilidade da matemática se adaptar ao período contemporâneo e vice-versa é uma das suas maiores virtudes. Hoje, temos que nos consciencializar que a tecnologia pôs à nossa disposição não só um mundo virtual de conhecimentos infinitos mas igualmente a possibilidade de manipular esses conhecimentos electronicamente. Isto tem profundas implicações, na natureza da matemática, que nos conduzem a várias questões: Será hoje indispensável a destreza do cálculo mental? Será hoje relevante a memorização massiva de termos, definições, teoremas, fórmulas, etc? Não será mais importante ter a capacidade de seleccionar e manusear o conhecimento disponível? Não serão hoje exigidas outras capacidades e competências até agora ignoradas?
A história da matemática está carregada de factos memoráveis que traduzem a sua evolução. Os Elementos de Euclides compilam um vasto conhecimento matemático. Alguma dessa matemática foi desenvolvida na prática da agrimensura, outra nos tempos de ociosidade dos senhores ricos da Grécia Antiga que se distraíam praticando matemática. Como afirmou G. Polya "um problema de matemática pode ser tão divertido quanto um enigma de palavras cruzadas". Uma boa parte da trigonometria foi desenvolvida para dar resposta a problemas de astronomia. Sem estes conhecimentos, Vasco da Gama nunca teria descoberto o caminho marítimo para a Índia. A invenção do cálculo foi impulsionada pela necessidade de compreender determinados fenómenos físicos. O desenvolvimento da geometria analítica de Descartes está intimamente relacionado com a mecânica. As geometrias não-euclideanas nasceram da teimosia de Bolyai e Lobatchevsky. O teorema das quatro cores bem como a matemática discreta, em geral, tiveram origem em duas situações absolutamente casuais da vida quotidiana.
A matemática faz-se por múltiplas razões: por necessidade, por diversão, por obsessão, por protagonismo, por realização pessoal e até por acaso. Mas não há parte alguma da matemática que não faça sentido, que não seja passível de interpretação e que seja despida de significado.
Por tudo isto e por muito mais, podemos afirmar que a Matemática existe porque é necessária, porque é útil, porque é bela, porque é divertida e por todas as outras razões de que agora não me lembro. O prazer de aprender matemática pode resultar de tantas motivações quantas as razões enunciadas.
Como escreveu P. Davis "A matemática é um mundo infinitamente complexo e misterioso: explorá-lo é um vício de que espero nunca me curar".



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