Paulo Serra

O sentido de Estado


A tragédia que o futuro nos reserva revela-se sempre um pouco pior do que aquela que a antecedeu.

Uma da facetas mais perturbadoras da generalidade dos políticos que nos têm governado nos últimos anos é, sem dúvida, a sua falta de sentido de Estado. Essa falta de sentido de Estado revela-se em dois tiques fundamentais, que acabam por constituir as duas faces de uma mesma moeda: criticarem, em bloco, a acção do governo que os antecedeu - é a glosa da "pesada herança"; e, em consequência disso, procurarem alterar, de forma radical, as políticas postas em jogo por esse mesmo governo - é a glosa da "mudança profunda".
Se o primeiro tique - que, no essencial, deriva da demagogia inerente a toda a actividade política, e que permite que qualquer governo não se coíba de inaugurar, hoje, as obras lançadas pelo governo anterior e que ainda ontem criticara de forma tão veemente - não acarreta, para o País, prejuízos de maior, já o mesmo não acontece com o segundo tique.
O afã de mudar, de mudar tudo já e a todo o custo, tem acarretado pelo menos dois prejuízos fundamentais. O primeiro é a progressiva destruição da nossa administração pública, naquilo que ela tinha (tem) de mais importante - a noção de "serviço público" -, substituindo-a por uma caterva de apaniguados políticos, em geral inexperientes e incompetentes. O segundo prejuízo é a incapacidade de sedimentar estruturas e procedimentos, lançando-os, testando-os, avaliando-os e alterando-os se necessário, de forma a dar-lhes a eficácia desejada. A parcialidade e o improviso tornam-se, deste modo, a regra de um Estado cuja acção devia, pela sua própria natureza e finalidade, ser caracterizada pela imparcialidade e pela estabilidade.
Sendo um tal processo grave em qualquer domínio da vida nacional, ele é particularmente grave nos domínios que têm a ver, de forma mais ou menos directa, com a segurança dos cidadãos - entendendo aqui a palavra segurança num sentido muito amplo, que engloba a repressão da criminalidade mas também o traçado e a manutenção de estradas e pontes ou a prevenção de incêndios e catástrofes.
Em tal processo reside, quanto a nós, uma das causas principais das tragédias que, nos últimos tempos, nos têm atingido. Na sua tentativa de apaziguamento das consciências, os governantes repetem até à exaustão, depois de cada uma dessas tragédias, aquele que é hoje um dos seus chavões preferidos: "A partir daqui, nada será como dantes!" E, num certo sentido, não deixam de ter razão: a tragédia que o futuro nos reserva revela-se sempre um pouco pior do que aquela que a antecedeu.
Talvez residisse aqui um bom motivo para levar cada governante a pensar duas vezes antes de criticar em bloco os governantes que o antecederam: o destino, com a sua provisão inesgotável de tragédias, encarrega-se sempre de castigar aqueles que falam demasiado cedo ou demasiado depressa. Com a agravante de que não é Marquês de Pombal ou Fontes Pereira de Melo quem quer, mas quem pode.