José Callado tem 54 anos
Entrevista com José Callado, director da Licenciatura em Arquitectura
“A arquitectura é uma forma de nos representarmos como pessoas e como sociedade”

José Callado veio de Lisboa para a Covilhã dirigir a licenciatura em Arquitectura na UBI. O docente fala sobre a sua visão da arquitectura actual e das metodologias inovadoras do curso que dirige.


Por Ana Maria Fonseca e Daniel Sousa e Silva


Urbi@Orbi- O que conhecia da UBI antes de ser convidado para director do curso de arquitectura?
José Callado-
A única coisa que conhecia era a prestação de alguns membros da universidade em congressos internacionais em que participei. Impressionou-me na altura a qualidade dos docentes desta universidade. Não podia fazer um juízo apenas sobre os poucos que conheci, mas pensava que uma universidade com docentes que brilham a nível internacional não é, com certeza, uma má universidade.

U@O- Qual é a sua visão sobre esta Universidade?
J.C.-
É muito diferente da universidade de onde venho. Primeiro, pelo sistema de funcionamento. Aqui existe uma universidade departamental e na Universidade Técnica de Lisboa (UTL) cada unidade orgânica é quase completamente independente, não existem relações funcionais entre os vários órgãos. Aqui há uma interdependência constante e na UTL é o oposto. Lá há um grande isolamento das escolas entre si. Depois, esta universidade pareceu-me extremamente enriquecida com gentes de todas as regiões. Posso dizer que a sensação que tive quando cheguei aqui foi a mesma de quando estive a estudar em Newcastle, onde há pessoas de todo o Mundo.

U@O - E no curso que dirige, o que mais lhe agrada e desagrada?
J.C.-
O Reitor deixou claro desde o início que não queria criar mais uma licenciatura igual às outras. Em geral existem duas licenciaturas de referência em Portugal, a do Porto e a de Lisboa, e todas as outras, com pequenas nuances, seguem essas estruturas. Foi graças ao Reitor que esta licenciatura não foi criada como um decalque daqueles modelos. Interessava que tivesse uma identidade própria. Aqui há uma conciliação entre matérias técnicas e de ordem artística, mas também com uma formação que permita aos nossos alunos questionarem-se constantemente sobre o saber, desenvolver uma capacidade de auto-aprendizagem. Das várias originalidades neste plano, gostaria de destacar a disciplina de filosofia, em relação à qual temos grandes expectativas.
Quem preparou o dossier para apresentar ao Ministério da Ciência e do Ensino Superior foi uma comissão de arquitectos não ligados ao ensino, e não uma comissão de académicos. Depois do documento ser aprovado, o Reitor achou por bem chamar um académico para colocá-lo em funcionamento, já que um plano de estudo e uma acção didáctica são coisas bem distintas. Então, teve a gentileza de me desafiar para tomar conta desta etapa.



"Queremos entusiasmar os alunos
a procurar por si"


U@O - Como está estruturada a licenciatura, e que mais valias trará em relação a outras do País?
J.C.-
Gostaria de olhar esta licenciatura em termos das suas especificidades e do produto que tentamos tirar daqui. Características fundamentais: o desenvolvimento de uma auto-responsabilização da aprendizagem. Iremos, fundamentalmente, dar instrumentos para que os estudantes sejam pessoas intrigadas ao longo da vida e capazes de desenvolver a sua capacidade de aprender. Queremos entusiasmar os alunos a procurar por si os seus próprios problemas e a singrarem na sua investigação.
Estamos numa época em que o conceito de saber é constantemente posto em causa, e uma das originalidades desta licenciatura é a meditação sobre a génese do conhecimento. Acho que os nossos alunos devem partilhar essa consciência, o que pensamos ser muito importante para a sua capacidade de auto-aprendizagem.
Há uma dúvida constante na arquitectura, será uma técnica, será uma arte? A primeira coisa que os alunos vão perceber é que a arquitectura não é uma arte plástica como outra qualquer. Queremos que os nossos estudantes olhem para a arquitectura como uma disciplina policêntrica, que se cruza com muitos outros saberes, mas que tem um modo de operar próprio, ou seja, pode-se dizer que tem uma metodologia projectual, que se distingue pelo seu carácter dualista, da metodologia e pensamento do arquitecto. Isto é algo que gostaríamos de passar aos nossos alunos.

U@O - Como são as instalações e equipamentos para este curso?
J.C.-
A UBI não tinha nenhuma tradição em arquitectura. Tive-mos de batalhar um pouco no sentido de encaixar instalações, o que conseguimos. A UBI tem, em geral, instalações muitíssimo boas. Tem os meios que permitem encarar com optimismo o futuro desta licenciatura. Compreende também uma grande dinâmica interna, o que, talvez seja o mais importante, e mostra uma grande capacidade de improvisação. A espinha dorsal dos seis anos da licenciatura já está preparada. Há aspectos de fundo que estão estruturados e, em função disso, vamos começar a desenvolver programas atempadamente. Temos um conjunto de programas de altíssima qualidade e de grande potencialidade para os alunos, servidos por muito bons professores .

U@O - O facto de ser uma licenciatura muito ligada a Engenharia Civil, e tendo em conta que estes cursos normalmente são rivais, traz vantagens ou desvantagens, a seu ver?
J.C.-
Essa é uma ideia recorrente, mas que nunca observei na prática. Penso que esse conflito vem por razões de natureza corporativa e não científica. No plano científico e cultural, arquitectos e engenheiros têm as maiores afinidades. Em grande parte dos casos, falamos a mesma linguagem. Até é interessante o curso ter nascido no interior do Departamento de Engenharia Civil. Quanto muito, constituímos um enriquecimento do departamento. Existe já uma capacidade técnica e cientifica de alto nível, que está a nosso favor, como, por exemplo, os laboratórios existentes. Não senti qualquer tipo de rivalidade. Para dizer a verdade, senti-me como peixe na água.

U@O - E os alunos, já teceram comentários quanto ao curso e às suas metodologias?
J.C. -
Julgo que os alunos ainda não construíram uma opinião, mas estão cheios de curiosidade. Muitos ainda pensam que a licenciatura é algo que os vai transformar em arquitectos como Siza Vieira ou Frank Gehry. De qualquer forma, gostaram do que viram e querem ficar. Estão entusiasmados, e têm demonstrado enorme capacidade de trabalho e vontade de responder aos desafios que lhe são lançados.

U@O - Que tipo de arquitectos gostaria de formar?
J.C.-
Gostaríamos de formar arquitectos muito auto-suficientes, pessoas com uma grande capacidade de se interrogarem constantemente sobre aquilo que fazem, de ir à procura de respostas às suas interrogações e de interrogarem as suas respostas.

U@O - Se pudesse fazer alguma intervenção na cidade, o que gostaria de fazer?
J.C.-
Ainda não tive tempo de andar a “esquadrinhar” a Covilhã, com olhar de turista e de arquitecto. Mas, de uma forma geral, penso que por cima de uma estrutura que nasceu ligada a uma certa visão industrial, alguém despejou um monte de casas, de forma um pouco caótica, o que deve ter contribuído para destruir uma identidade que a cidade terá tido. Tudo o que sejam intervenções de modo a devolver à Covilhã uma parte da sua identidade seria algo que eu, como qualquer outro arquitecto, gostaria de fazer.
No curso temos cadeiras que falam da recuperação e requalificação de edifícios. No entanto, não quero deixar aos meus alunos a ideia de que a recuperação de coisas antigas é o lado bom da nossa actividade e a construção de coisas novas, o lado mau. Porque o que fazemos hoje é o património de amanhã.
Não posso deixar de referir que aceitei com muito entusiasmo o desafio que me foi feito, e achei fantástico o facto de a UBI ter tido a coragem e a visão de intervir num mundo que está limitado na polaridade Lisboa-Porto.





Perfil



Nasceu em Moçambique, mas cresceu em Lisboa e escolheu, há vários anos, Cascais para morar. “ Em Lisboa, estudei primeiro na Escola São João de Brito até ao 7º ano, depois na São João de Castro e, por fim, na Escola Naval”, conta José Callado.
Depois da licenciatura em Arquitectura concluída na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL), trabalhou como chefe dos serviços técnicos na Câmara Municipal de Palmela. Posteriormente entrou como assistente no Departamento de Arquitectura da ESBAL, e, a partir daí, seguiu nesta instituição o seu percurso académico. À excepção do doutoramento, sobre a interactividade dos espaços de habitação, que apresentou na University of Newcastle, em Inglaterra. Em seguida, voltou como docente para a ESBAL, mais tarde Faculdade de Arquitectura de Lisboa.
Quanto ao seu estilo, José Callado diz que não é nem racionalista, nem ecléctico. “Não parto de uma realidade pré-estabelecida, procuro encontrar em cada projecto uma linguagem que responda à ideia que tenho, de que a arquitectura, como outras artes, é uma forma de nos representarmos como pessoas e como sociedade. O artista tem a responsabilidade de estabelecer uma ligação com a realidade, com a razão de ser e, sobretudo, um certo sentido de intemporalidade”, refere; e continua, “a obra confere um carácter de testemunho a outras gerações, que de outro modo não teriam contacto com certos aspectos de um período”.
José Callado sublinha que sempre combinou o percurso académico com o de atelier. Começou por trabalhar num projecto de restaurações no Castelo de São Jorge. Hoje, tem um gabinete que faz projectos de média dimensão.
“Penso que todos gostariam de deixar uma marca, mas a época em que vivemos é muito complexa. O retrato desta época é , de certa forma, caótico. A impossibilidade de se definir um paradigma desresponsabiliza-nos um pouco, mas, por outro lado, a necessidade de um gesto artístico representar o que quer que seja dá-nos alguma responsabilidade. Vivemos numa instabilidade permanente, entre o desejo de representar alguma coisa e essa coisa nos escapar por entre os dedos das mãos”.