Página solta de um diário de viagem




Bolívia, 31 de Maio de 2003










Por Catarina Moura

Cá estou em La Paz. São 09h00 da noite e estou esgotada mas não
consigo deixar de escrever. Ou tentar escrever, pois nunca antes senti tão claramente o quão limitadas são as palavras. Acho que nunca me senti tão escassa delas e, ao mesmo tempo, tão necessitada de, de algum modo, fazer justiça a tudo o que vejo e sinto.
Hoje passei o dia 4 mil metros acima do nível do mar, em pleno coração da cordilheira dos Andes, no lago Titicaca, o lago mais alto do mundo, que marca a fronteira entre a Bolívia e o Peru. Como descrever estes 8500 km2 de água é que não sei… É uma imensidão que de facto não cabe em palavras. Ali está, frio, plácido, azul e profundo, rodeado por cumes nevados que recortam a paisagem, mil metros mais acima de mim. Por ele naveguei calmamente durante cerca de uma hora, com um frio
cortante a trespassar-me o corpo e um sol intenso a queimar-me o rosto – uma contradição que aqui tão alto, nesta altura do ano (quase Inverno), é o dia a dia destas pessoas, pois estão completamente expostas ao frio mais absoluto e, ao mesmo tempo, à plenitude de um sol que a ausência de nuvens torna impossível filtrar. Uma hora da mais absoluta tranquilidade para chegar à Ilha do Sol, santuário da cultura Inca cujo nome vem do facto de ali sempre haver sol, mesmo que em seu redor haja frio, vento, chuva ou neve. Por isso os povos antigos a tinham como um lugar abençoado pelos deuses. Não tem um ar abençoado. Não é verde nem paradisíaca, é um pedaço irregular de terreno rochoso e amarelado pelo sol, mas tem a força da paisagem que a rodeia. Impressiona encontrá-la ali. Impressiona o contraste que oferece com todo aquele azul, toda aquela placidez circundante.
Já na ilha somos recebidos pelas tradicionais camponesas bolivianas, umas mulheres pequeninas, enfiadas nas suas muitas saias e cobertas com mantas Incas, que já me habituara a ver em La Paz, vendendo nas ruas, com as faces queimadas pelo sol, arreigadas às suas tradições numa cidade onde a tradição é cada vez menos o que era. Subindo e explorando um pouco, encontro vários lamas, que os camponeses criam para ajudar na agricultura, beneficiando também do facto de serem uma atracção turística e de isso significar algum dinheiro mais. Depois de visitar um pequeno museu que expõe um pouco da cultura Tiwanacu, que viria a dar origem ao império Inca, deixo-me participar na cerimónia de um velho curandeiro que nos fala e abençoa num idioma antigo e em extinção chamado Aymará. Apesar de saber que o ritual é sobretudo turístico, dei por mim completamente seduzida pela visão daquele homem enrugado, tão plácido como a paisagem que o enquadrava, murmurando aquelas palavras que a minha incapacidade de as compreender reduz a sons.
Chego a La Paz já de noite, após uma viagem de quase duas horas pelas montanhas, com a paisagem a amenizar o efeito das curvas e do mau estado da estrada. Pelo caminho, muitas aldeolas, povoadas pelos mesmos camponeses pequeninos que parecem saídos das ilustrações de um livro de contos. Os bolivianos são um povo pequenino na sua generalidade, mas estas camponesas são-no muito mais. A necessidade trá-los a La Paz.
São cada vez mais, persistindo na sua diferença, sendo agora um elemento mais a definir o caos visual – na realidade, o caos para todos os sentidos – que é esta cidade. Situada num vale enorme rodeado de picos, cresceu até se transformar numa confusão labiríntica de casas que ocupam todos, absolutamente todos os espaços concebíveis e inconcebíveis, terminando esta enorme cratera habitada, transformada pela noite num infinito presépio de luzes, que suaviza a caótica sensação que a cidade nos oferece à luz do dia. Um caos potenciado pela confusão automobilística provocada pela ausência de sinalização e pelos incontáveis táxis-carrinha que circulam pela cidade até encher, seguindo de porta aberta, com um homem dependurado gritando a plenos pulmões preços e destinos – gritos multiplicados por centenas, mesclados com constantes e estridentes buzinadelas que tentam, em vão, advertir os peões que se lançam à estrada como loucos, na ânsia de chegar ao outro lado.
Este cenário absolutamente “Mad Max” torna-se ainda mais chocante pelo grau de pobreza desta gente. La Paz é outro mundo. Não tem nada em comum com o que conhecemos ou imaginamos. As casas são construções abstractas, de tijolo, algumas – poucas – apenas com a fachada pintada, quase todas sem vidros nas janelas, com paredes que parecem só enquadrar umas com as outras por obra do acaso. Construções frágeis e frias, que vão sendo ampliadas por quem as habita, na direcção possível e da maneira possível, dando desta cidade a ideia de uma construção abandonada a meio. Pouco a pouco, no entanto, ao falar com as pessoas, fui-me apercebendo que a pobreza existe, sim, mas que na verdade a grande maioria dos bolivianos vai “sacando adelante”. Esta gente é movida pela necessidade e a estética, esse critério no fundo tão ocidental, ainda não é uma necessidade. Não lhes interessa gastar dinheiro a pintar uma casa ou a planificá-la para que lhes pareça bonita – precisam de um tecto apoiado em quatro paredes e com isso vivem. O dinheiro é demasiado precioso para ser investido fora do universo das suas necessidades.
Entender isto amenizou o choque, mas a sujidade da cidade não o deixa desaparecer por completo. Hoje, lá em cima, apesar da dificuldade em respirar, foi com indescritível prazer que deixei aquele ar encher-me o mais possível os pulmões. Em La Paz tudo sugere sujidade e contaminação. O ar é pesado, as ruas estão sujas, muitas das pessoas também, há sempre um mau cheiro a seguir a outro, é admirável que continuem vivos com o estado da comida que se vende pela rua. Desenvolveram resistências físicas verdadeiramente impressionantes! Mas eu também continuo viva e – espero – relativamente saudável. Mais uns dias e acho que já entraria nesses táxis colectivos que nunca se sabe onde irão parar e levam sempre gente a mais!
Pensar que amanhã a esta hora estarei num avião, cruzando “o charco”, entristece-me. Vou acordar cedíssimo para aproveitar a manhã e ir às ruínas de Tiwanacu, pelos vistos as mais impressionantes que restaram dessa civilização, pelo menos pelo que me dizem aqui no hotel. Antes de dormir e de sonhar com incas e deuses do sol ainda vou escrever uns postais aos amigos, tentando não decepcionar os que pensam que já ando metida nos hábitos cocainómanos locais! Deverei contar que tenho bebido chá de coca??!! Enfim, acho que os vou desiludir… Na verdade, o narcotráfico que durante muito tempo caracterizou a Bolívia e tanto animou a sua economia foi já reduzido em mais de 90%, agravando a pobreza em que vive esta gente. Algo restará, creio. Nos mercados das aldeolas vendem-se folhas de coca para mascar ou fazer os tais “cházinhos” - os “mates de coca”, tão legalizados e inocentes que até já são uma das variedades Tetley locais, destinados a combater nada mais que problemas de estômago e os efeitos da altitude! Vou levar-lhes uma saqueta…